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domingo, 29 de janeiro de 2012

Estadão - Artigo de Gaudêncio Torquato

Alianças cruzadas

29 de janeiro de 2012

GAUDÊNCIO TORQUATO - O Estado de S.Paulo

Eleição no Brasil deixou de ser aula de civismo para se transformar em luta encarniçada pelo poder. E a razão ultrapassa a observação de que a política substituiu o escopo aristotélico de missão a serviço do polis pela meta de servir de escada de ascensão pessoal. O fato é que o acervo da política se esgarçou na névoa do tempo.

Ademais, a economia é que dá hoje o rumo das coisas, trazendo a política para sua esfera e, por conseguinte, motivando os representantes do povo a usá-la como investimento. O bem-estar coletivo continua a enfeitar um discurso matizado por meia dúzia de conceitos, entre eles, a inserção das massas à mesa do consumo, o resgate de direitos individuais, a justa distribuição de renda e a maior aproximação entre as classes sociais, situações que incorporam padrões de vida consentâneos com a dignidade humana. Esse é o tônus ideológico da atualidade.

Por mais que a pletora de partidos brasileiros - quase 30 - se esforce para expressar especificidades, o sumo que se extrai do liquidificador partidário aponta para esse composto, mescla dos ideários da social-democracia e do liberalismo social. Siglas que defendem o socialismo nos moldes que antecederam a queda do Muro de Berlim o fazem mais por retórica que por convicção. Por aqui há forte dose de consenso sobre o que se pode chamar de sistema liberal-capitalista sob controle do Estado. Os admiradores do "capitalismo à moda chinesa", com intervenção rigorosa do Estado, não chegam a ameaçar.

Essa é a essência do nosso discurso político. Que não frequentará o palco eleitoral porque o eleitor não se motiva com abstrações. Portanto, veremos uma pregação mais adjetiva e menos substantiva, uma expressão menos ideológica e mais centrada em perfis. Os atores, claro, deverão fazer pontuações em certas áreas, ressaltando aspectos de programas, tentando colar o seu ideário às diretrizes que marcam o estágio de desenvolvimento do País. Mas é pouco provável vermos a federalização dos pleitos, a tentativa de puxar a força da administração federal para o palanque local. No tabuleiro municipal são mais adequadas as peças da micropolítica, coisas que dizem respeito ao cotidiano: transporte, educação, saúde, saneamento, moradia...

Nas capitais e nas grandes e médias cidades se pode até prever a abordagem mais generalista, amplificada pela tuba de ressonância de mídia mais poderosa. Se o País andar tranquilo até as margens eleitorais, ou seja, preservando o animus animandi dos contingentes periféricos, a partir de dinheiro no bolso, acesso ao consumo, colchões sociais, inflação controlada, etc., os candidatos patrocinados pelo rolo compressor governista poderão ser beneficiados. Massas carentes prezam o status quo e demonstram gratidão escolhendo candidatos com elas identificados. Há, porém, o outro lado: em Estados como São Paulo e Minas Gerais, que têm os dois maiores contingentes eleitorais do País e são governados por tucanos, os largos estratos médios tendem a ser mais críticos em relação ao governo federal. Com administrações bem avaliadas, esses governos estaduais poderão contrapor-se à onda situacionista que puxará as candidaturas da aliança federal.

Dito isto, convém arrematar: o pleito de outubro juntará grupos contrários e aproximará clássicos contendores. No palanque do blá-blá-blá assemelhado subirão candidatos de alianças exóticas jamais vistas por estas plagas. Traduzindo: o partido A apoia o governo federal, é contrário ao governo estadual, mas se unirá na eleição municipal ao partido B, que é contrário à administração federal; este partido B, em outros municípios, poderá trocar de samba do crioulo doido, fazendo parcerias com candidatos de outras siglas, algumas contra, outras a favor dos governos federal e estadual; já o partido C terá apetite para comer metade dessa salada mista, fechando com o A de um jeito, com o B de outro e até reciclando a mistura com o D, ao qual caberá inverter os papéis de acordo com suas conveniências. Em suma, o País verá uma campanha de conveniências. Os entes partidários farão extraordinário esforço para turbinar suas máquinas, preparando-as para a decolagem de 2014, que será emblemática: concessão de um ciclo de 16 anos de mando petista, retomada do poder pelos tucanos ou ascensão de um terceiro ator ao pódio

Vejamos as primeiras cenas. O PT abre um leque de articulações sob a batuta do maestro Lula, que se desdobra para atrair o maior número de aliados para a campanha de seu pupilo Fernando Haddad, em São Paulo. A retomada da capital paulista parece ser questão de honra (e esforço extraordinário) para o ex-presidente. A estratégia petista é ceder a cabeça de chapa aos candidatos favoritos de partidos parceiros, mantendo, contudo, a meta de fazer o mais gordo plantel de prefeitos (projeta 1.500) e alcançar a posição de maior ilha no arquipélago político.

Essa operação, todavia, não depende apenas de sua vontade. O PMDB, o aliado principal, não abdica da condição de maior partido brasileiro, o que lhe permitiria ser o fiador do situacionismo. Mas não descarta a hipótese de candidatura própria em 2014. Um olho no norte, outro no sul. O PSB, por sua vez, sonha alto e abre três alternativas: candidatura própria em 2014, continuação da aliança com o PT (reivindicando pedaço maior do bolo) e união com o PSDB de Aécio Neves. O governador Eduardo Campos (PE), que preside a sigla, já confessou o sonho de reunir o grupo pós-64 no comando do País. Ele e Aécio, juntos, liderariam essa estratégia. Já o PSDB alimenta o sonho de retomar o cetro, mas faltam-lhe discurso e bases populares. E o PSD de Gilberto Kassab, ao formar uma bancada expressiva na Câmara dos Deputados, deverá ser um núcleo de aglutinação de contrariados em outros grupamentos.

Uma coisa parece certa: os atores sairão do ensaio de outubro sem muitos aplausos das plateias. A política a cada dia perde vigor. GAUDÊNCIO TORQUATO, JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP, É CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO TWITTER: @GAUDTORQUATO

domingo, 25 de dezembro de 2011

Estadão - Gaudêncio Torquato.

Narcisistas e demagogos

O convívio intenso e longo com o poder tem um poderoso efeito narcotizante. Transforma seres mortais, pessoas simples e humildes, gente com histórias iguais a de seus semelhantes, em pequenos “deuses” de um Olimpo cada vez mais povoado.

A que se deve esse tipo de distorção? À armadilha do falso retrato, da autocontemplação, que prende os homens públicos na moldura de Narciso, aquele que foi condenado pelos deuses a se apaixonar pela própria imagem.

Como conta a lenda, ele tomou-se de amores pela imagem quando se contemplava nas águas transparentes de uma fonte. Obcecado pelo reflexo, Narciso não mais se afastava da fonte, definhando ali até a morte.

Hoje, vive-se a plena era do Estado-Midiático. Como lembra Roger-Gérard Schwartzenberg, no clássico O Estado-Espetáculo, os profissionais do espetáculo e da política compartilham frequentemente as mesmas atitudes e os mesmos vezos, como se, diante de problemas de representação comparáveis, “eles reagissem recorrendo a procedimentos análogos.”

O Brasil está recheado de narcisistas, pessoas fascinadas pelo seu próprio brilho, um brilho ilusório, porque muitas perderam o poder, mas não o orgulho. Que tipo de mal os narcisistas cometem contra si mesmos e contra a sociedade?

O maior dos males é o da inação, o da inércia, o da perda do sentido de realidade. Presos no simulacro do poder, exibem um prestígio falso, que frequentemente conduz ao ócio. Aliás, praestigium, do latim, significa nada mais nada menos que artifício, ilusão, malabarismo.

Os malabaristas da política promovem a mistificação das massas, fazendo-as crer que o discurso é a ação, o verbo é a obra, a palavra é sinônimo de verdade. Muitos se transformam em dândis, com seu prazer em surpreender, espantar.

Dizia Baudelaire: “creio que existe na ação política uma certa dose de provocação, por ser preciso suscitar uma reação”.

O dândi quer chamara atenção, provocar, criar impacto. E, não raro, cai no exagero, fazendo da estética sua ação política mais forte. É useiro e vezeiro na arte do exagero. Nele, a verdade acaba mas a história tem sempre continuidade. Por conta da verborragia.

Ademais, a cultura oral é uma das tradições mais ricas de nosso país. Basta uma pequena viagem pela monumental obra do incomparável Luís da Câmara Cascudo, um potiguar boêmio, bonachão e denso, que produziu a mais fecunda e abrangente obra sobre a cultura popular brasileira.

A tradição de oralidade penetrou profundamente nas veias, mentes e corações da representação política, a ponto de se atribuir, por muito tempo, a grandeza dos homens públicos não aos projetos e feitos empreendidos, mas ao domínio do verbo no palanque ou na tribuna parlamentar.

Duas historinhas, muito conhecidas, mostram os polos do discurso tradicional da política. A primeira é a do baiano, embevecido com a retórica complicada, cheia de palavras difíceis, de seu candidato em comício numa pequena cidade interiorana. Não se cansou de bater palmas, concluindo categórico: “não entendi nada do que o homem falou, mas falou bonito; vai levar meu voto”.

A segunda historinha é a do candidato, que, arrebatado, enérgico, espumando de civismo, discorria sobre o sentido da liberdade. Argumentava que um povo livre sabe escolher os seus caminhos, seus governantes, eleger os seus vereadores, prefeitos e deputados. Para entusiasmar a multidão, levou um passarinho numa gaiola, que deveria ser solto no clímax do discurso.

No momento certo, tirou o passarinho da gaiola, e com ele na mão direita, jogou o verbo: “a liberdade é o sonho do homem, o desejo de construir seu espaço, sua vida, com orgulho, sem subserviência, sem opressão; Deus (citar Deus é sempre bom) nos deu a liberdade para fazermos dela o instrumento de nossa dignidade; quero que todos vocês, hoje, aqui e agora, comprometam-se com o ideal do homem livre. Para simbolizar esse compromisso, vamos aplaudir soltar esse passarinho, que vai ganhar o céu da liberdade”.

Ao abrir a mão, viu que esmagara o passarinho. A frustração por ter matado o bichinho acabou com a euforia e as vaias substituíram os aplausos. Foi um desastre. É sempre assim quando não se controla a emoção. Em se tratando do discurso político, a emoção mata frequentemente a razão.

Juntando-se, então, o narcisista e o demagogo, o verborrágico e o reizinho cheio de empáfia, tem-se a receita de um perfil que ainda teima em se apresentar às massas nacionais. É o encontro do ruim com o pior, de Narciso com aquela figura canhestra tão bem caracterizada por Chico Anísio, Justo Veríssimo.

E quando isso ocorre, a política volta a ser aquilo que Paul Valéry mais temia: “a arte de impedir que as pessoas cuidem do que lhes dizem respeito”.

Nesses tempos de grande influência da mídia, é bom ter cuidado, porque a espetacularização da política pode significar a ruína dos atores. Não enganam mais como antigamente; são pegos quando escondem o lixo debaixo do tapete; e flagrados quando a maquiagem procura disfarçar a deficiência do pensamento.

Mulheres e homens publicos desses nossos trópicos: reflitam, neste apagar de luzes de 2011, sobre o exercício da representação coletiva. Assumam o compromisso de trazer a verdade para a seara da política. O Estado-Espetáculo aprecia os efeitos mágicos do circo político.

Como dizia Luis XIV, “os povos gostam do espetáculo; através dele, dominamos seu espírito e seu coração”. Mas há um limite para tudo. Um dia, mais cedo ou mais tarde, o povo, cansado de ver tanto malabarismo, fará a mágica que nenhum representante gostaria de ver: mandá-lo de volta para sua casa sem o passaporte do mandato popular.



Gaudêncio Torquato, jornalista, professsor titular da USP, é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato