terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Estadão - Artigo de Lee Siegel

O próximo presidente dos Estados Unidos

02 de janeiro de 2012 | 6h 50

Lee Siegel

Se os eleitores aceitarem por completo o fato de ele ser mórmon, Mitt Romney será o próximo presidente dos Estados Unidos. Não será eleito por suas ideias a respeito do futuro do país. Será eleito porque o presidente Barack Obama é negro. Apesar de tudo o que se fala sobre a divisão existente entre os eleitores americanos conservadores, eles votarão de forma unânime em qualquer candidato republicano que seja branco. Herman Cain, quem sabe? Este nunca teve qualquer chance.

Deixando de lado as considerações de cunho ideológico - admito que, embora espere que Obama seja reeleito, se Romney se tornasse presidente eu não pegaria a minha família e sairia do país. A verdade nua e crua, olhando retrospectivamente os últimos três anos, é que o presidente negro desconcertou a metade dos cidadãos deste país. Se Obama fosse branco, nunca teria encontrado a resistência frenética que o persegue praticamente desde a posse, em janeiro de 2009.

Não consigo lembrar de outro presidente americano que tenha despertado tanto rancor e ódio quanto Obama. Nixon foi odiado porque estendeu e intensificou uma guerra absurda no Sudeste Asiático, na qual pereceram 50 mil americanos. Clinton foi violentamente odiado pela direita, mas em especial na periferia da política americana - e não no que ela tem de mais tradicional.

Obama recebeu mais ameaças de morte do que qualquer outro presidente moderno. Ele provocou o tratamento mais desrespeitoso por parte da oposição de que se tem memória. Em várias ocasiões, os republicanos se recusaram a sentar com ele à mesa para negociar o compromisso mais básico. Quando, em setembro, o presidente pediu permissão para discursar em uma sessão conjunta do Congresso, John Boehner, o presidente da Câmara, recusou. Isto jamais aconteceu. Como alguns dos republicanos mais destacados afirmaram off the record, sua única estratégia é repudiar toda e qualquer iniciativa proposta por Obama.

São políticos ambiciosos. Eles não insultariam e obstruiriam o presidente se não tivessem a certeza de que este comportamento arbitrário provoca uma reação favorável em seu eleitorado. A verdade pura e simples é que os Estados Unidos são na realidade dois países. "Vermelhos" e "azuis" - como costumam ser designados respectivamente conservadores e liberais - são qualificativos que não traduzem a feroz polaridade expressa pela fratura. Estas duas Américas existem desde a Guerra Civil. Os transtornos econômicos e a desorientação social só contribuíram para tornar as divergências entre ambos ainda mais amargas.

A divergência mais profunda diz respeito à raça. Não que os conservadores sejam racistas e os liberais não. O mito da inteligência de uma raça foi relegado à margem da vida americana. Hoje existe uma sólida classe média negra e um crescente estrato social de negros ricos. Milhões de donas de casa brancas bebem avidamente cada palavra de Oprah Winfrey. Personalidades negras irrefutáveis em todos os aspectos da nossa vida servem de modelo de comportamento às crianças brancas. Uma breve incursão em qualquer pátio de escola revelará grupos de crianças negras e de crianças brancas que se segregam voluntariamente, mas tribalismo não é racismo. Toda a vida social é uma lenta jornada que leva da semelhança à diferença.

Contudo, não obstante todo o progresso social ocorrido nos Estados Unidos, uma ideia de hierarquia permaneceu arraigada nas profundezas da mente americana. Quando a indústria do país entrou em crise, e milhões de trabalhadores brancos perderam os seus empregos ou tiveram de aceitar ocupações inferiores, nunca deixou de persistir um sentimento atávico de que os brancos sempre deteriam uma posição social acima da dos negros.

Porque, apesar da ascensão de alguns negros em todos os campos da vida americana, a preponderância dos negros ricos e bem-sucedidos ocorre nas áreas do entretenimento e dos esportes. É fácil para a classe média baixa branca afetada pela crise sentir-se superior a personagens, por mais que estes sejam pessoalmente dotados, cujo trabalho consiste em representar para dar prazer a um público.

De repente, quando todo o universo do trabalho e da posição social parecia mudar, apareceu um presidente negro, e como se não bastasse, um intelectual. Isto foi, e é demais para pelo menos a metade do país, que todos os dias vê seu mundo virar de cabeça para baixo, em vários sentidos. Neste país, há pessoas, talvez a maioria, que votarão contra Obama simplesmente para corrigir o erro histórico que sua presidência representa para elas. Em comparação com a aberração, na opinião delas, de um presidente negro, o fato de ter um presidente mórmon parece menos aberrante. Observem Romney atentamente quando ele aparece no noticiário. Os candidatos à presidência costumam esforçar-se em projetar um ar de confiabilidade, estabilidade, conhecimento e sucesso. Romney se esforça, principalmente, por parecer branco.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Estadão - Gaudêncio Torquato.

Narcisistas e demagogos

O convívio intenso e longo com o poder tem um poderoso efeito narcotizante. Transforma seres mortais, pessoas simples e humildes, gente com histórias iguais a de seus semelhantes, em pequenos “deuses” de um Olimpo cada vez mais povoado.

A que se deve esse tipo de distorção? À armadilha do falso retrato, da autocontemplação, que prende os homens públicos na moldura de Narciso, aquele que foi condenado pelos deuses a se apaixonar pela própria imagem.

Como conta a lenda, ele tomou-se de amores pela imagem quando se contemplava nas águas transparentes de uma fonte. Obcecado pelo reflexo, Narciso não mais se afastava da fonte, definhando ali até a morte.

Hoje, vive-se a plena era do Estado-Midiático. Como lembra Roger-Gérard Schwartzenberg, no clássico O Estado-Espetáculo, os profissionais do espetáculo e da política compartilham frequentemente as mesmas atitudes e os mesmos vezos, como se, diante de problemas de representação comparáveis, “eles reagissem recorrendo a procedimentos análogos.”

O Brasil está recheado de narcisistas, pessoas fascinadas pelo seu próprio brilho, um brilho ilusório, porque muitas perderam o poder, mas não o orgulho. Que tipo de mal os narcisistas cometem contra si mesmos e contra a sociedade?

O maior dos males é o da inação, o da inércia, o da perda do sentido de realidade. Presos no simulacro do poder, exibem um prestígio falso, que frequentemente conduz ao ócio. Aliás, praestigium, do latim, significa nada mais nada menos que artifício, ilusão, malabarismo.

Os malabaristas da política promovem a mistificação das massas, fazendo-as crer que o discurso é a ação, o verbo é a obra, a palavra é sinônimo de verdade. Muitos se transformam em dândis, com seu prazer em surpreender, espantar.

Dizia Baudelaire: “creio que existe na ação política uma certa dose de provocação, por ser preciso suscitar uma reação”.

O dândi quer chamara atenção, provocar, criar impacto. E, não raro, cai no exagero, fazendo da estética sua ação política mais forte. É useiro e vezeiro na arte do exagero. Nele, a verdade acaba mas a história tem sempre continuidade. Por conta da verborragia.

Ademais, a cultura oral é uma das tradições mais ricas de nosso país. Basta uma pequena viagem pela monumental obra do incomparável Luís da Câmara Cascudo, um potiguar boêmio, bonachão e denso, que produziu a mais fecunda e abrangente obra sobre a cultura popular brasileira.

A tradição de oralidade penetrou profundamente nas veias, mentes e corações da representação política, a ponto de se atribuir, por muito tempo, a grandeza dos homens públicos não aos projetos e feitos empreendidos, mas ao domínio do verbo no palanque ou na tribuna parlamentar.

Duas historinhas, muito conhecidas, mostram os polos do discurso tradicional da política. A primeira é a do baiano, embevecido com a retórica complicada, cheia de palavras difíceis, de seu candidato em comício numa pequena cidade interiorana. Não se cansou de bater palmas, concluindo categórico: “não entendi nada do que o homem falou, mas falou bonito; vai levar meu voto”.

A segunda historinha é a do candidato, que, arrebatado, enérgico, espumando de civismo, discorria sobre o sentido da liberdade. Argumentava que um povo livre sabe escolher os seus caminhos, seus governantes, eleger os seus vereadores, prefeitos e deputados. Para entusiasmar a multidão, levou um passarinho numa gaiola, que deveria ser solto no clímax do discurso.

No momento certo, tirou o passarinho da gaiola, e com ele na mão direita, jogou o verbo: “a liberdade é o sonho do homem, o desejo de construir seu espaço, sua vida, com orgulho, sem subserviência, sem opressão; Deus (citar Deus é sempre bom) nos deu a liberdade para fazermos dela o instrumento de nossa dignidade; quero que todos vocês, hoje, aqui e agora, comprometam-se com o ideal do homem livre. Para simbolizar esse compromisso, vamos aplaudir soltar esse passarinho, que vai ganhar o céu da liberdade”.

Ao abrir a mão, viu que esmagara o passarinho. A frustração por ter matado o bichinho acabou com a euforia e as vaias substituíram os aplausos. Foi um desastre. É sempre assim quando não se controla a emoção. Em se tratando do discurso político, a emoção mata frequentemente a razão.

Juntando-se, então, o narcisista e o demagogo, o verborrágico e o reizinho cheio de empáfia, tem-se a receita de um perfil que ainda teima em se apresentar às massas nacionais. É o encontro do ruim com o pior, de Narciso com aquela figura canhestra tão bem caracterizada por Chico Anísio, Justo Veríssimo.

E quando isso ocorre, a política volta a ser aquilo que Paul Valéry mais temia: “a arte de impedir que as pessoas cuidem do que lhes dizem respeito”.

Nesses tempos de grande influência da mídia, é bom ter cuidado, porque a espetacularização da política pode significar a ruína dos atores. Não enganam mais como antigamente; são pegos quando escondem o lixo debaixo do tapete; e flagrados quando a maquiagem procura disfarçar a deficiência do pensamento.

Mulheres e homens publicos desses nossos trópicos: reflitam, neste apagar de luzes de 2011, sobre o exercício da representação coletiva. Assumam o compromisso de trazer a verdade para a seara da política. O Estado-Espetáculo aprecia os efeitos mágicos do circo político.

Como dizia Luis XIV, “os povos gostam do espetáculo; através dele, dominamos seu espírito e seu coração”. Mas há um limite para tudo. Um dia, mais cedo ou mais tarde, o povo, cansado de ver tanto malabarismo, fará a mágica que nenhum representante gostaria de ver: mandá-lo de volta para sua casa sem o passaporte do mandato popular.



Gaudêncio Torquato, jornalista, professsor titular da USP, é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

sábado, 24 de dezembro de 2011

Estadão - Artigo de Olgária Martins Feres Matos

As rebeliões do efêmero

A ideologia dominante é a do novo-rico, que conhece o preço de todas as coisas, mas desconhece o seu valor

24 de dezembro de 2011 | 16h 00

Olgária Chain Feres Matos

O movimento pela descriminalização do uso da maconha, a luta contra a corrupção, a dos estudantes na USP pela retirada da Polícia Militar do câmpus universitário, dos homossexuais contra a homofobia no Brasil, correspondem à tendência neoliberal global de ocupação do espaço público - mas em um país que não responde pela qualidade da formação educacional que garantiria o fortalecimento da “vida intelectual” e do debate político. Que se pense, em particular, no movimento pela liberação da maconha, que não desenvolve reflexões sobre o sentido da disseminação de narcotizantes na sociedade de massa e do consumo, a questão da cultura do excesso, cuja exemplaridade são as festas rave e a música techno. Nos anos 80, Salvador Dalí, com todo seu surrealismo, interpelado sobre o uso de drogas, respondeu que se deveria consumi-las no máximo cinco vezes durante toda a vida. Ser Baudelaire ou Michaud, Omar Khayyam ou Benjamin não é dado a muitos.


Tiago Queiroz/AE
A dita classe A assumiu caráter predatório ao ignorar questões como transporte e educação
Já as mobilizações estudantis no Chile, ao contrário das contestações no Brasil, têm sido contra a flexibilização dos currículos escolares e a redução da carga horária nas disciplinas humanistas e formadoras, como literatura, línguas estrangeiras, história, etc., a fim de barrar a desigualdade no acesso aos bens culturais e a proliferação dos privilégios educacionais. O que manifesta a consciência de que a educação não é um serviço do qual se é consumidor, cliente, porque ela não é uma mercadoria.

Já o movimento dos homossexuais, mais politizado porque em luta contra preconceitos de que decorrem sofrimentos, não se interroga sobre a tendência pós-moderna a indiferenciações do que é por natureza assimétrico, no que diz respeito àquelas que existem entre as gerações, entre pais e filhos, professores e alunos, masculino e feminino, isto é, o mal-estar identitário no mundo contemporâneo. Quanto ao movimento pela “transparência”, tem a força da indignação, mas não questiona a corrosão do sistema parlamentar, consequência, hoje, da falência da escolaridade e da ética que a ela se vinculava quando a educação, ao menos em seus princípios fundadores, humanistas e republicanos, propunha, primordialmente, formar as crianças para fazer delas adultos mais felizes e melhores.

Auspiciada pelo dinheiro como valor hegemônico, a ideologia dominante é a do novo-rico, que conhece o preço das coisas, mas desconhece seu valor. Se, em seu primeiro espírito, o capitalismo se baseou na parcimônia e no não contraimento de dívidas e no segundo valorizou o mérito e o trabalho como “dignificante” do homem, seu estágio atual é “sem espírito”, entronizando o dinheiro como supremo valor, dinheiro que, na aceleração do tempo, induz à pressa, os indivíduos perdendo o gosto do pensamento, nada desejando aprofundar.

O próprio amálgama de diversos delitos entendidos como corrupção (favorecimentos ilícitos, informações privilegiadas, tráfico de influência, gratificações indevidas, desvio de verbas públicas, suborno, omissões por interesses próprios ou partidários, formação de cartéis), malgrado pontos em comum, atesta sua fraca conceituação. E porque é mais fácil “derrubar o tirano do que as causas da tirania”, a vigilância cidadã fica sujeita à demagogia, quando a opinião pública é direcionada por interesses dissimulados, a defesa do bem público transgredindo seus limites e invadindo a esfera privada e a da intimidade. Tais movimentos, quanto mais conceitualmente confusos, mais vulneráveis à apropriação oportunista.

Além disso, as mobilizações contemporâneas se fazem com as novas tecnologias de informação, nas quais tudo se passa “aqui e agora”. Essa temporalidade é a do efêmero, mas em sentido pós-moderno, uma vez que ele se reduz ao episódico, compensado pela visibilidade promovida pelas mídias. Sua lógica é a do espetáculo que não se vincula a qualquer fundamentação teórica, adquirindo a forma do “evento”. No passado, a vida se organizava no tempo longo e nos laços duradouros, cuja “metafísica” subjacente dizia respeito à percepção da impermanência de tudo, da lei do efêmero, da vanidade das coisas e da grandeza do instante. As manifestações públicas e ocasionais contemporâneas se constituem no âmbito de um vazio ideológico e no quadro do anti-intelectualismo do mundo moderno, o que se expressa na pseudoparticipação popular e em governos que se fazem através das mídias, pela televisão e pela propaganda.

Com reivindicações particulares voltadas para si mesmas, esses movimentos não se vinculam uns aos outros, resultando em particularismos. Há algum tempo, as manifestações públicas repercutiam em toda a sociedade, chamada assim a delas participar, ativamente ou por consentimento, ao que correspondia a lei entendida como universal, pelo reconhecimento das diferenças das demandas sociais, unificadas, justamente, na lei universalizadora. As mobilizações contemporâneas têm seguidores que se reúnem em comunidades virtuais com sua solidariedade pós-moderna, sem valores comuns admirados e compartilhados por todos.Walter Benjamin caracterizou a modernidade capitalista como “pobreza da experiência” e “experiência da pobreza”, mas nela identificou o novo. Pois essa pobreza “leva a começar do começo, a retomar as coisas desde o princípio, a dar um jeito com pouco, a construir com o pouco que se tem”.

Recorde-se que o movimento que paralisou a França em 1968, de que decorreram desde o movimento de emancipação feminina até a própria democratização das esquerdas autoritárias e de seus partidos centralizadores - encontrando-se na base até mesmo da queda do Muro de Berlim -, teve seu início com estudantes que reivindicavam o direito de visita a suas colegas e namoradas em seus quartos de estudantes.

Razão pela qual os recentes movimentos no Brasil podem constituir o “princípio esperança” do aprimoramento da vida política e do bem-viver em nosso cotidiano.

* PROFESSORA TITULAR DE FILOSOFIA DA USP E AUTORA, ENTRE OUTROS, DE BENJAMINIANAS: CULTURA CAPITALISTA E FETICHISMO CONTEMPORÂNEO (UNESP)