segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Indignados do mundo Uni-vos

Creomar Lima Carvalho de Souza

Toda crise traz uma oportunidade! Esse jargão vendido pelos manuais de administração mundo afora pode hoje ser aplicado à política. O prolongado processo de recessão econômica que abate o hemisfério norte e a falta de capacidade política dos dirigentes destas regiões em encontrar soluções para este problema gerou duas oportunidades: a primeira de reflexão acerca dos valores que compõe a democracia liberal contemporânea e a segunda conseqüente desta, da urgência no estabelecimento de uma relação mais equilibrada entre os interesses individuais, as necessidades das grandes corporações e o papel do Estado como árbitro desta relação.

E qual o papel dos movimentos populares nesta equação?

Basicamente, os movimentos dos indignados (termo criado durante as manifestações populares recentes na Espanha) que se alastram por toda a Europa Ocidental e desembarcam agora nos Estados Unidos da América, tem como preocupação fundamental o fato de que as autoridades políticas tem se mostrado incompetentes ou desinteressadas na solução da crise econômica que se aprofunda. E diferentemente de outros movimentos políticos a atual leva de manifestações tem fugido dos elementos tradicionais, tais como, partidos políticos e associações e buscado novas formas de ação.

Neste aspecto, as redes sociais surgem como um elemento novo do panorama político dando espaço gratuito e legitimidade a movimentos que não contam com o apadrinhamento nem com a boa vontade do status quo. Chama atenção a vontade destes grupos em exigir que a democracia se manifeste de forma mais pura. Isto quer dizer, há uma vontade de que as regras fiquem claras e que os interesses dos grandes grupos econômicos não se sobreponham aos direitos do cidadão comum.

Pode-se afirmar que a expressão “People Before Profits” – Pessoas antes dos lucros – permite um entendimento claro das expectativas e inseguranças que marcam tal movimento.

Obviamente, que qualquer generalização se torna perigosa ante a dificuldade de entendimento das especificidades de cada grupamento humano envolvido nestas manifestações. Porém, é um fato que as autoridades políticas tem tido enorme dificuldade de superar as dificuldades econômicas recentes.

O fracasso das autoridades políticas tradicionais abre, portanto, espaço para a livre manifestação e a necessidade de reflexão dos problemas que envolvem a democracia liberal em sua faceta representativa. Porém, as ações dos grupos de indignados ainda não possuem a capacidade de alterar as estruturas políticas vigentes. Cabe, entretanto, uma observação atenciosa do desenvolvimento de tais ações e de como as mesmas irão contaminar o espaço político tradicional tanto em âmbito de geração de resistências, quanto de transformações

terça-feira, 18 de outubro de 2011

BBC Brasil - Governos de Lula e Dilma tentam aumentar a presença do Brasil em países africanos.

João Fellet

Ao fazer sua primeira visita à África como presidente nesta semana, Dilma Rousseff desembarcará em um continente muito mais familiar à diplomacia brasileira do que quando seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a Presidência, em 2003.

Segundo um levantamento do Itamaraty obtido pela BBC Brasil, o país hoje tem embaixadas em 37 das 54 nações africanas, das quais 19 foram inauguradas desde o início do governo Lula.



Entre os países não africanos, o Brasil só possui menos embaixadas no continente do que Estados Unidos (com 49 missões), China (48), França (46) e Rússia (38).

Ainda conforme o levantamento, o Brasil está à frente de outros dois países emergentes que têm buscado estreitar as relações com nações africanas: a Índia, com 27 missões, e a Turquia, que, ao erguer 20 das suas 31 embaixadas na África nos últimos três anos somou-se ao grupo de nações que cortejam o continente.

A abertura de embaixadas brasileiras na África foi acompanhada de um movimento recíproco: desde 2003, 17 missões de países africanos foram inauguradas em Brasília, somando-se às 16 que já existiam.

Segundo Gert Wunderlich, executivo do banco sul-africano Standard Bank, a ofensiva diplomática brasileira na África é parte da política do governo de diversificar os parceiros comerciais do país, tradicionalmente dependente da Europa e dos Estados Unidos.

"O governo brasileiro viu na África uma oportunidade para que o país avançasse em sua ambição de se tornar mais globalizado", diz Wunderlich, que vive em São Paulo.

Os esforços diplomáticos se refletiram nas trocas comerciais: em 2002, o intercâmbio do Brasil com o continente somava US$ 5 bilhões (cerca de R$ 8,7 bilhões); em 2008, passou para US$ 26 bilhões – quase metade dos US$ 56 bilhões do comércio entre Brasil e China em 2010.

Após um esfriamento das relações comerciais nos dois anos seguintes, efeito da crise econômica internacional, o governo espera neste ano bater o recorde de 2008, já que nos seis primeiros meses de 2011 as trocas entre Brasil e África alcançaram US$ 17 bilhões (R$ 29,5 bilhões).

África lusófona

A visita da presidente ao continente africano começa nesta segunda-feira pela África do Sul, onde ela participará de um encontro do Ibas (fórum que reúne Índia, Brasil e África do Sul), para discutir temas como segurança e desenvolvimento sustentável, além de parcerias comerciais.

Na quarta-feira, Dilma viaja até Moçambique para assinar acordos de cooperação técnica e se reunir com empresários brasileiros.

Além de patrocinar a construção de uma fábrica de retrovirais, que deve ser inaugurada em 2012, o Brasil mantém com Moçambique programas de cooperação agrícola e uma linha de crédito de US$ 300 milhões (R$ 521 milhões).

A visita ocorrerá em um momento de incremento das relações empresariais: em julho, a mineradora brasileira Vale inaugurou em Moçambique sua maior operação no exterior – a mina de carvão em Tete (Província no norte do país), que já é a segunda maior mina de carvão a céu aberto do mundo.

Empresas brasileiras também estão envolvidas na construção ou reforma de uma termelétrica, uma ferrovia, um porto e um aeroporto no país africano.

Na quinta-feira, Dilma visitará Angola, o segundo maior produtor de petróleo da África Subsaariana.


Angola é o segundo maior produtor da África subsaariana e tem 25 mil trabalhadores brasileiros

O país tem cerca de 25 mil trabalhadores brasileiros, segundo estimativa da Associação dos Empresários e Executivos Brasileiros em Angola (Aebran).

Boa parte são funcionários de empreiteiras como Andrade Gutierrez, Camargo Correia e Odebrecht, mas também há numerosos profissionais nos ramos de saúde, informática e comunicação, além de consultores em diversas áreas.

Competição

Cobiçada por seus recursos naturais – além de petróleo, o país tem vastas reservas diamantíferas, terras férteis e água abundante –, Angola é palco de uma competição que se replica em diferentes graus em vários países africanos e que tem como protagonista a China.

No entanto, segundo um diplomata brasileiro, a crescente influência chinesa em Angola e no continente africano não ameaça o espaço conquistado pelo Brasil.

Ele afirma que, embora o Brasil não possa competir com a China em oferta de crédito aos países africanos nem em capacidade de construir grandes obras – o país asiático costuma levar operários chineses para as nações africanas onde investe em troca de matérias-primas –, a maneira de atuar brasileira confere uma relação mais sólida com seus pares.

"Se o Brasil estiver lá e construir relações com os países, terá vantagem competitiva em relação aos que não fizerem isso."

Gert Wunderlich, executivo do banco sul-africano Standard Bank

"Os africanos sentem que, com os brasileiros, participam de uma conversa entre iguais, o que jamais ocorrerá com os chineses", afirma.

Ele diz ainda que, além dos bons resultados comerciais, a aproximação diplomática dos últimos anos já trouxe ao Brasil benefícios em palcos internacionais, como o apoio de vários países africanos à bem-sucedida candidatura do brasileiro José Graziano à direção da FAO (agência da ONU para agricultura), em junho.

Para Gert Wunderlich, ainda que o governo brasileiro receba críticas pela ênfase que dá às relações com países subdesenvolvidos - particularmente os africanos - trata-se de uma aposta para o futuro.

Ele afirma que a África abriga um sexto da população mundial e será uma das regiões do mundo que mais crescerão nas próximas décadas.

"Se o Brasil estiver lá e construir relações com os países, terá vantagem competitiva em relação aos que não fizerem isso. Ou então a China e a Índia vão ocupar todos os espaços", diz.

sábado, 15 de outubro de 2011

A democracia em uma nova faceta?

Creomar Lima Carvalho de Souza

Refletindo acerca da validade das manifestações organizadas por meio de redes sociais é possível vislumbrar dois pontos de vista distintos: o primeiro é de que tais ações não redundam em nenhum efeito prático. Ou seja, manifestar pelo simples ato de manifestar não redundaria em absolutamente nada.
E o segundo, de que as manifestações são fruto de uma ação democrática e que seus resultados são visualizados imediatamente. Acreditando, porém, que nenhum dos dois pontos é a verdade, aqui será feita uma abordagem diferenciada. A mesma será centrada não nos resultados, mas, sim no ato que estimula o protesto em si – a vontade de manifestar.
Basicamente, a tese defendida aqui é que a internet dia a dia passa a ocupar um espaço associativo que de maneira gradual vem substituindo as arenas tradicionais. Em outras palavras, acredita-se aqui que as redes sociais podem ser vetor de construção de uma ordem democrática pós-partidária. Esta, por sua vez, teria como principais características o desapego a atores associativos desgastados no tempo como partidos e sindicatos. E como foco principal de pressão os representantes políticos que por sua vez, não possuem ainda os atributos intelectuais necessários para entender o dinamismo deste processo.
No caso brasileiro é possível afirmar que a montagem de um ambiente democrático minimamente institucionalizado, significando aqui liberdade de imprensa, liberdade de expressão e direito de manifestação permite que as frustrações sociais sejam canalizadas de maneira mais visível. Contudo, diferentemente do ocorrido durante os anos 1980 e 1990 as arenas tradicionais, tais como, associações profissionais e partidárias perdem espaço para um novo modelo de organização baseado em demandas mais imediatas e apartadas de componentes corporativos.
Especificamente, pode-se afirmar que as manifestações construídas a partir de redes sociais são fruto de demandas de uma classe média que superou determinadas barreiras de sobrevivência e que, sobretudo, em ambientes urbanos mais desenvolvidos deseja alterar o ambiente político. A política e, por seu turno os políticos, são vistos por esse grupamento social como contaminados por vícios de conduta e sem capacidade de prover soluções novas para problemas cotidianos.
E é aqui que surge a diferença, enquanto que as ondas de protesto que marcaram a vida política brasileira durante a redemocratização possuíam um rosto, os movimentos atuais são desprovidos de personagens até o presente momento. Essa peculiaridade que facilita a mobilização de interesses diversos gera, porém, a dificuldade de dar vazão aos interesses defendidos. Em outras palavras, a ausência de um rosto torna o movimento pouco eficaz em termos de objetivos a serem alcançados em curto prazo.
Porém, essa falta de perspectiva de mudança imediata é o fator mais interessante do movimento em análise, pois, a frustração pelo não atendimento de alguma demanda pode fazer com que o movimento se aperfeiçoe. Tal aperfeiçoamento pode gerar no tempo o surgimento de novas lideranças capazes de dar substância as demandas levantadas pelo grupo e resultando em maior pressão sobre os representantes. Espera-se aqui que tal previsão se consolide com o tempo e que os impulsos de cidadania oriundos do mundo virtual não se percam nos modismos que caracterizam as redes sociais.

domingo, 9 de outubro de 2011

IMIL - Por que o Brasil não deve cair na falácia do voto distrital

Autor: Alberto Carlos Almeida


O sistema distrital joga no lixo uma enorme quantidade de votos e gera feudos eleitorais
Quando alguém quer criticar nosso sistema eleitoral, costuma mencionar a eleição do palhaço Tiririca. Em 2010, ele recebeu cerca de 1,35 milhão dos quase 100 milhões de votos válidos para deputado federal. Graças a nosso sistema eleitoral, o palhaço teve 1,35% de todos os votos nacionais – e carregou, com sua votação, outros três deputados que não seriam eleitos, não fosse o empurrãozinho. Esse exemplo é sempre citado para demonstrar as distorções geradas por nosso sistema eleitoral proporcional (que distribui as cadeiras parlamentares na proporção das votações obtidas por cada coligação partidária) – e usado como argumento por aqueles que defendem o voto distrital (que divide o território do país em distritos, cada um com uma cadeira parlamentar).
Mas as distorções geradas pelo voto distrital são ainda maiores. Em 2010, na Grã-Bretanha, país em que vigora o sistema distrital, o partido Liberal-Democrata teve 23% dos votos nacionais, mas elegeu somente 8,8% dos deputados. Isso significa que 14,2% dos votos de todos os britânicos ficaram sem representante. Esse é um resultado típico do voto distrital. Ele joga no lixo uma enorme quantidade de votos, bem mais que o 1,35% de Tiririca. Tais eleitores ficam sem nenhuma representação parlamentar. É assim que funciona o voto distrital: ele exclui da representação todos os partidos menos dois: o governista e o oposicionista. Não há pluripartidarismo com o voto distrital.
Outra consequência direta do voto distrital é contribuir para que os políticos se protejam em distritos cada vez menos competitivos. Entre 1944 e 1950, 152 deputados federais dos Estados Unidos, outro país que adota o voto distrital, perderam a reeleição que disputavam em seus distritos. Entre 1954 e 1960, esse número caiu para 100 derrotados. E ele vem caindo desde então, atingindo a marca de apenas 47 deputados que não foram reeleitos entre 2004 e 2008. Isso significa que a taxa de renovação da Câmara dos Deputados americana hoje é de apenas 10% – no Brasil, ela está em torno de 50%. E é falso argumentar que os eleitores estão felizes com seus representantes, pois as pesquisas mostram um enorme nível de insatisfação com os políticos.
São muitas as evidências de que o voto distrital resulta na formação de feudos eleitorais e na consequente falta de competitividade nas disputas. Nos Estados Unidos, na eleição de 2002, 81 dos 437 distritos registraram apenas uma candidatura. Para praticamente 20% da câmara, o eleitor não teve escolha. Ainda mais grave do que isso: na eleição de 2004, 85% dos deputados americanos foram eleitos com mais de 60% dos votos em seus distritos. No Brasil, quando alguém vence com 60%, está configurada uma surra eleitoral – que nada mais é que falta de competitividade.
Os exemplos de formação de feudos podem ser multiplicados. Em 2002, os deputados federais da Califórnia fizeram um acordo: graças ao redesenho dos mapas eleitorais, cada deputado do Estado ficou com um distrito onde sua vitória era certa. Resultado: todos os 50 deputados daquele Estado foram reeleitos. Também em 2002, na Califórnia, quase 60% dos deputados venceram com mais de dois terços dos votos. O acordo da Califórnia poderia facilmente ser reproduzido em inúmeros Estados brasileiros, se adotássemos o sistema distrital.
O dispositivo usado para adequar as fronteiras dos distritos aos interesses dos partidos é conhecido em inglês como gerrymandering. O nome dessa prática remonta ao ano de 1812, quando o então governador de Massachusetts, Elbridge Gerry, desenhou vários distritos eleitorais que, reunidos, lembravam a forma de uma salamandra. Com esse tipo de expediente, os limites de um distrito são redesenhados de tal maneira que um determinado candidato seja facilmente eleito e reeleito na região (leia o quadro abaixo). Todos os países que adotam o sistema distrital sofrem, em maior ou menor grau, com a deformação do gerrymandering.
Nos Estados Unidos, há até um programa de computador, chamado Maptitude for Redistricting, que permite a qualquer deputado desenhar um distrito onde sua reeleição se torne praticamente certa. O quadro ao lado mostra um entre centenas de distritos desenhados de acordo com o gerrymandering, o quarto distrito de Illinois. Ali, duas regiões hispânicas estão unidas por 2 quilômetros de estrada sem um eleitor sequer. Nesse distrito, qualquer candidato democrata é eleito, até mesmo um poste. Não se trata de um fenômeno isolado. A grande maioria dos distritos nos EUA é desenhada de acordo com o gerrymandering. Caso o Brasil adotasse o voto distrital, os políticos brasileiros seriam tão ou mais criativos que seus congêneres americanos.
Um efeito ainda mais direto do voto distrital é o bipartidarismo. Tanto Grã-Bretanha quanto Estados Unidos são países bipartidários, e os dois maiores partidos franceses concentram 85% das cadeiras de deputados. Quando isso acontece, todos os cargos de direção na mesa da Câmara e nas comissões legislativas são controlados pelo partido majoritário. O bipartidarismo é resultado de – e resulta no – conflito. Não há composições, nem meios-termos ou acordos, pois não há partido de centro. A profunda divisão na sociedade americana entre democratas e republicanos pode ser vista como uma consequência perniciosa do bipartidarismo, que acirrou paixões e deixou pouco espaço à razão.
No mundo todo, é possível atestar a enorme superioridade do voto proporcional diante do distrital. Desde 1993, 12 países abandonaram o sistema distrital puro e adotaram algum tipo de voto proporcional. Desses 12, cinco saíram do distrital puro e foram para o proporcional puro. Um desses países foi a África do Sul. A Rússia, que era inteiramente distrital, mudou para metade distrital e metade proporcional. E apenas um país desde 1993 abandonou o voto proporcional: Madagascar. A reforma do sistema foi feita pelo partido dominante, chamado Eu amo Madagascar. Ele hoje controla 103 das 160 cadeiras da Câmara. Hoje, em Madagascar, quem define os limites geográficos dos distritos é o presidente. Um prato cheio para o gerrymandering.
Por fim, os defensores do voto distrital dizem que ele aproxima o eleitor do eleito. Os estudos científicos sobre o assunto mostram que não há diferença nesse aspecto no que diz respeito aos sistemas eleitorais. A afirmação de que o voto distrital torna o representante mais próximo do representado não se sustenta pelas evidências empíricas. Todas elas comprovam que, se o Brasil viesse um dia a adotar tal sistema, como tantos têm defendido, as palhaçadas superariam em muito a eleição de Tiririca.

Fonte: revista “Época”

domingo, 2 de outubro de 2011

iFHC - O que os vizinhos pensam do Brasil

Sérgio Fausto

O protagonismo do Brasil na América do Sul não é uma questão de escolha. Tornou-se um dado da realidade, com o declínio relativo da Argentina e a perda de influência dos Estados Unidos na região. Deve até aumentar no futuro previsível, dadas as tendências expansionistas da economia brasileira. A questão é saber se esse protagonismo se traduzirá em liderança e se ela será positiva para a região em seu conjunto.
Em síntese, essa foi a visão da maioria dos líderes políticos sul-americanos presentes em mesa-redonda organizada recentemente pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC) para discutir o papel do Brasil na América do Sul. Participaram da discussão o expresidente da Bolívia Carlos Mesa, o senador chileno e ex-chanceler Ignacio Walker, a senadora uruguaia Constanza Moreira, o ex-ministro da Justiça do Peru Fausto Alvarado, além de vários brasileiros, como os embaixadores Sergio Amaral e José Botafogo Gonçalves e o ex-chanceler Celso Lafer. Uma amostra representativa da centro-esquerda democrática sul-americana.
Apesar de uma percepção em geral positiva sobre o Brasil, detectam-se incerteza e mesmo inquietude em relação ao "gigante sul-americano".
Existe receio de que a expansão das exportações e dos investimentos brasileiros em outros países da América do Sul prejudique a capacidade de produção e geração de empregos de suas economias. E que isso leve mais água para o moinho de governos, partidos e/ou movimentos adeptos de um nacionalismo retrógrado com inclinações populistas e autoritárias. Em países menores, sobretudo naqueles onde há ressentimento histórico em relação ao Brasil, como a Bolívia e o Paraguai, é bem vivo o temor de que o extravasamento da economia brasileira acabe por levá-los a uma situação de subordinação política ao colossal vizinho. Mesmo no Uruguai, o mais desenvolvido dos 1 / 3pequenos países fronteiriços, observa-se um incipiente nacionalismo antibrasileiro, em reação à compra de terras em quantidade crescente por empresas brasileiras naquele país.
Algumas características do investimento brasileiro na região reforçam o sentimento descrito. O fato de grandes companhias brasileiras receberem apoio do BNDES para a aquisição de empresas locais acentua a percepção de que nosso país conta com um poder excessivo, derivado não apenas do porte e da eficiência de seus maiores grupos empresariais, mas também da estreita associação entre eles e o Estado brasileiro. A propósito, em entrevista recente ao jornal Valor Econômico, o presidente da União Industrial Argentina afirmou, com exagero característico: "Só quando tivermos um BNDES poderemos abaixar a guarda".
A reação à crescente presença brasileira na América do Sul poderia ser atenuada se fossem os investimentos feitos em parceria com grupos locais, mas as joint ventures são raras, predominando o controle do investidor brasileiro sobre o negócio. São raros também os fornecedores locais que se beneficiam dos empréstimos concedidos pelo BNDES a governos vizinhos, em financiamentos vinculados ao pagamento de obras e serviços realizados pelas grandes empreiteiras brasileiras nos países da região.
Em suma, à constatação de assimetria na relação com o Brasil soma-se o sentimento de que se está diante de uma competição desleal contra um poder cujo funcionamento parece opaco. De fato, não há nada similar na região à aliança entre grandes grupos empresariais privados, fundos de pensão públicos, empresas estatais e banco de desenvolvimento. Com frequência o investimento e o crédito chineses surgem como alternativas bem-vistas diante do temor de se tornar muito dependente do Brasil, apesar de as relações entre Estado e empresas serem na China muito mais opacas do que aqui.
Além de pouco transparente, o Brasil é visto como "soberanista", isto é, relutante em ceder parcelas de sua autonomia decisória em benefício do fortalecimento de instituições de governança coletiva da região. Desse "soberanismo" faria parte a resistência a pagar o custo financeiro, em favor da integração, correspondente ao tamanho de sua economia, como a Alemanha na Europa.
O Brasil é também considerado ambivalente quanto à importância que sua política 2 / 3externa atribui à região. Embora a centralidade da América do Sul esteja claramente definida no discurso, resta muita dúvida sobre se o Brasil de fato considera que o fortalecimento de sua liderança regional é mesmo necessário à realização de suas ambições como global player. Critica-se o governo brasileiro por supostamente não consultar os governos sul-americanos antes de tomar iniciativas no plano internacional, ao mesmo tempo que invoca a sua condição de líder regional quando lhe interessa fazê-lo nas negociações internacionais.
É nítido o contraste entre a percepção de que o Brasil é autocentrado e até certo ponto voraz em relação aos vizinhos e a opinião que no geral se tem aqui dentro a respeito da atitude do governo brasileiro em relação à região, normalmente percebida como muito generosa com as demandas de alguns países e tolerante com eventuais desmandos contra empresas brasileiras que operam na vizinhança.
Para o Brasil, não se trata, é claro, de moldar o figurino de sua política externa sulamericana à opinião média de seus vizinhos, que, aliás, varia de país a país. Trata-se, isso sim, de constatar que nos faz falta - na sociedade e no governo - um pensamento sobre a América do Sul que leve na devida conta a percepção dos outros países da região a nosso respeito, sem perder de vista os interesses brasileiros. Precisamos de uma visão abrangente e de longo prazo, que não se deixe levar por simpatias ideológicas episódicas nem por ilusões de que o peso econômico do Brasil se traduzirá automaticamente em maior liderança política. À medida que cresça a nossa presença na região, essa visão será cada vez mais indispensável.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

The New York Review of Books - George Soros

Does the Euro Have a Future?

SEPTEMBER 15, 2011
George Soros

The euro crisis is a direct consequence of the crash of 2008. When Lehman Brothers failed, the entire financial system started to collapse and had to be put on artificial life support. This took the form of substituting the sovereign credit of governments for the bank and other credit that had collapsed. At a memorable meeting of European finance ministers in November 2008, they guaranteed that no other financial institutions that are important to the workings of the financial system would be allowed to fail, and their example was followed by the United States.

Angela Merkel then declared that the guarantee should be exercised by each European state individually, not by the European Union or the eurozone acting as a whole. This sowed the seeds of the euro crisis because it revealed and activated a hidden weakness in the construction of the euro: the lack of a common treasury. The crisis itself erupted more than a year later, in 2010.

There is some similarity between the euro crisis and the subprime crisis that caused the crash of 2008. In each case a supposedly riskless asset—collateralized debt obligations (CDOs), based largely on mortgages, in 2008, and European government bonds now—lost some or all of their value.

Unfortunately the euro crisis is more intractable. In 2008 the US financial authorities that were needed to respond to the crisis were in place; at present in the eurozone one of these authorities, the common treasury, has yet to be brought into existence. This requires a political process involving a number of sovereign states. That is what has made the problem so severe. The political will to create a common European treasury was absent in the first place; and since the time when the euro was created the political cohesion of the European Union has greatly deteriorated. As a result there is no clearly visible solution to the euro crisis. In its absence the authorities have been trying to buy time.


In an ordinary financial crisis this tactic works: with the passage of time the panic subsides and confidence returns. But in this case time has been working against the authorities. Since the political will is missing, the problems continue to grow larger while the politics are also becoming more poisonous.

It takes a crisis to make the politically impossible possible. Under the pressure of a financial crisis the authorities take whatever steps are necessary to hold the system together, but they only do the minimum and that is soon perceived by the financial markets as inadequate. That is how one crisis leads to another. So Europe is condemned to a seemingly unending series of crises. Measures that would have worked if they had been adopted earlier turn out to be inadequate by the time they become politically possible. This is the key to understanding the euro crisis.

Where are we now in this process? The outlines of the missing ingredient, namely a common treasury, are beginning to emerge. They are to be found in the European Financial Stability Facility (EFSF)—agreed on by twenty-seven member states of the EU in May 2010—and its successor, after 2013, the European Stability Mechanism (ESM). But the EFSF is not adequately capitalized and its functions are not adequately defined. It is supposed to provide a safety net for the eurozone as a whole, but in practice it has been tailored to finance the rescue packages for three small countries: Greece, Portugal, and Ireland; it is not large enough to support bigger countries like Spain or Italy. Nor was it originally meant to deal with the problems of the banking system, although its scope has subsequently been extended to include banks as well as sovereign states. Its biggest shortcoming is that it is purely a fund-raising mechanism; the authority to spend the money is left with the governments of the member countries. This renders the EFSF useless in responding to a crisis; it has to await instructions from the member countries.

The situation has been further aggravated by the recent decision of the German Constitutional Court. While the court found that the EFSF is constitutional, it prohibited any future guarantees benefiting additional states without the prior approval of the budget committee of the Bundestag. This will greatly constrain the discretionary powers of the German government in confronting future crises.

The seeds of the next crisis have already been sown by the way the authorities responded to the last crisis. They accepted the principle that countries receiving assistance should not have to pay punitive interest rates and they set up the EFSF as a fund-raising mechanism for this purpose. Had this principle been accepted in the first place, the Greek crisis would not have grown so severe. As it is, the contagion—in the form of increasing inability to pay sovereign and other debt—has spread to Spain and Italy, but those countries are not allowed to borrow at the lower, concessional rates extended to Greece. This has set them on a course that will eventually land them in the same predicament as Greece. In the case of Greece, the debt burden has clearly become unsustainable. Bondholders have been offered a “voluntary” restructuring by which they would accept lower interest rates and delayed or decreased repayments; but no other arrangements have been made for a possible default or for defection from the eurozone.

These two deficiencies—no concessional rates for Italy or Spain and no preparation for a possible default and defection from the eurozone by Greece—have cast a heavy shadow of doubt both on the government bonds of other deficit countries and on the banking system of the eurozone, which is loaded with those bonds. As a stopgap measure the European Central Bank (ECB) stepped into the breach by buying Spanish and Italian bonds in the market. But that is not a viable solution. The ECB had done the same thing for Greece, but that did not stop the Greek debt from becoming unsustainable. If Italy, with its debt at 108 percent of GDP and growth of less than 1 percent, had to pay risk premiums of 3 percent or more to borrow money, its debt would also become unsustainable.

The ECB’s earlier decision to buy Greek bonds had been highly controversial; Axel Weber, the ECB’s German board member, resigned from the board in protest. The intervention did blur the line between monetary and fiscal policy, but a central bank is supposed to do whatever is necessary to preserve the financial system. That is particularly true in the absence of a fiscal authority. Subsequently, the controversy led the ECB to adamantly oppose a restructuring of Greek debt—by which, among other measures, the time for repayment would be extended—turning the ECB from a savior of the system into an obstructionist force. The ECB has prevailed: the EFSF took over the risk of possible insolvency of the Greek bonds from the ECB.

The resolution of this dispute has in turn made it easier for the ECB to embark on its current program to purchase Italian and Spanish bonds, which, unlike those of Greece, are not about to default. Still, the decision has encountered the same internal opposition from Germany as the earlier intervention in Greek bonds. Jürgen Stark, the chief economist of the ECB, resigned on September 9. In any case the current intervention has to be limited in scope because the capacity of the EFSF to extend help is virtually exhausted by the rescue operations already in progress in Greece, Portugal, and Ireland.

In the meantime the Greek government is having increasing difficulties in meeting the conditions imposed by the assistance program. The troika supervising the program—the EU, the IMF, and the ECB—is not satisfied; Greek banks did not fully subscribe to the latest treasury bill auction; and the Greek government is running out of funds.

In these circumstances an orderly default and temporary withdrawal from the eurozone may be preferable to a drawn-out agony. But no preparations have been made. A disorderly default could precipitate a meltdown similar to the one that followed the bankruptcy of Lehman Brothers, but this time one of the authorities that would be needed to contain it is missing.

No wonder that the financial markets have taken fright. Risk premiums that must be paid to buy government bonds have increased, stocks have plummeted, led by bank stocks, and recently even the euro has broken out of its trading range on the downside. The volatility of markets is reminiscent of the crash of 2008.

The authorities are doing what they can to forestall an immediate breakdown. The Greeks are meeting the troika’s demands so as to receive the next installment of the rescue package. The ECB is allowing banks to borrow dollars for up to three months instead of just one week, as has been the case. The Bundestag is expected to pass legislation establishing the EFSF. These steps will delay the climax from September to December.

Unfortunately, the capacity of the financial authorities to take additional measures has been severely restricted by the recent ruling of the German Constitutional Court. It appears that the authorities have reached the end of the road with their policy of “kicking the can down the road.” Even if a catastrophe can be avoided, one thing is certain: the pressure to reduce deficits will push the eurozone into prolonged recession. This will have incalculable political consequences. The euro crisis could endanger the political cohesion of the European Union.

There is no escape from this gloomy scenario as long as the authorities persist in their current course. They could, however, change course. They could recognize that they have reached the end of the road and take a radically different approach. Instead of acquiescing in the absence of a solution and trying to buy time, they could look for a solution first and then find a path leading to it. The path that leads to a solution has to be found in Germany, which, as the EU’s largest and highest-rated creditor country, has been thrust into the position of deciding the future of Europe. That is the approach I propose to explore.

To resolve a crisis in which the impossible becomes possible it is necessary to think about the unthinkable. To start with, it is imperative to prepare for the possibility of default and defection from the eurozone in the case of Greece, Portugal, and perhaps Ireland. To prevent a financial meltdown, four sets of measures would have to be taken. First, bank deposits have to be protected. If a euro deposited in a Greek bank would be lost to the depositor, a euro deposited in an Italian bank would then be worth less than one in a German or Dutch bank and there would be a run on the banks of other deficit countries. Second, some banks in the defaulting countries have to be kept functioning in order to keep the economy from breaking down. Third, the European banking system would have to be recapitalized and put under European, as distinct from national, supervision. Fourth, the government bonds of the other deficit countries would have to be protected from contagion. The last two requirements would apply even if no country defaults.

All this would cost money. Under existing arrangements no more money is to be found and no new arrangements are allowed by the German Constitutional Court decision without the authorization of the Bundestag. There is no alternative but to give birth to the missing ingredient: a European treasury with the power to tax and therefore to borrow. This would require a new treaty, transforming the EFSF into a full-fledged treasury.

That would presuppose a radical change of heart, particularly in Germany. The German public still thinks that it has a choice about whether to support the euro or to abandon it. That is a mistake. The euro exists and the assets and liabilities of the financial system are so intermingled on the basis of a common currency that a breakdown of the euro would cause a meltdown beyond the capacity of the authorities to contain. The longer it takes for the German public to realize this, the heavier the price they and the rest of the world will have to pay.

The question is whether the German public can be convinced of this argument. Angela Merkel may not be able to persuade her own coalition, but she could rely on the opposition. Having resolved the euro crisis, she would have less to fear from the next elections.

The fact that arrangements are made for the possible default or defection of three small countries does not mean that those countries would be abandoned. On the contrary, the possibility of an orderly default—paid for by the other eurozone countries and the IMF—would offer Greece and Portugal policy choices. Moreover, it would end the vicious cycle now threatening all of the eurozone’s deficit countries whereby austerity weakens their growth prospects, leading investors to demand prohibitively high interest rates and thus forcing their governments to cut spending further.

Leaving the euro would make it easier for them to regain competitiveness; but if they are willing to make the necessary sacrifices they could also stay in. In both cases, the EFSF would protect bank deposits and the IMF would help to recapitalize the banking system. That would help these countries to escape from the trap in which they currently find themselves. It would be against the best interests of the European Union to allow these countries to collapse and drag down the global banking system with them.

It is not for me to spell out the details of the new treaty; that has to be decided by the member countries. But the discussions ought to start right away because even under extreme pressure they will take a long time to conclude. Once the principle of setting up a European Treasury is agreed upon, the European Council could authorize the ECB to step into the breach, indemnifying the ECB in advance against risks to its solvency. That is the only way to forestall a possible financial meltdown and another Great Depression.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Discurso da Exma. Sra. Pres. Dilma Roussef - Abertura da 66ª Assembleia-Geral da ONU.

Senhor presidente da Assembleia-Geral, Nassir Abdulaziz Al-Nasser, senhor secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, senhoras e senhores chefes de Estado e de Governo, senhoras e senhores, pela primeira vez, na história das Nações Unidas, uma voz feminina inaugura o Debate Geral. É a voz da democracia e da igualdade se ampliando nesta tribuna que tem o compromisso de ser a mais representativa do mundo. É com humildade pessoal, mas com justificado orgulho de mulher, que vivo este momento histórico. Divido esta emoção com mais da metade dos seres humanos deste planeta, que, como eu, nasceram mulher, e que, com tenacidade, estão ocupando o lugar que merecem no mundo. Tenho certeza, senhoras e senhores, de que este será o século das mulheres.

Na língua portuguesa, palavras como "vida", "alma" e "esperança" pertencem ao gênero feminino. E são também femininas duas outras palavras muito especiais para mim: "coragem" e "sinceridade". Pois é com coragem e sinceridade que quero lhes falar no dia de hoje. Senhor presidente, o mundo vive um momento extremamente delicado e, ao mesmo tempo, uma grande oportunidade histórica. Enfrentamos uma crise econômica que, se não debelada, pode se transformar em uma grave ruptura política e social. Uma ruptura sem precedentes, capaz de provocar sérios desequilíbrios na convivência entre as pessoas e as nações. Mais que nunca, o destino do mundo está nas mãos de todos os seus governantes, sem exceção. Ou nos unimos todos e saímos, juntos, vencedores ou sairemos todos derrotados.

Agora, menos importante é saber quais foram os causadores da situação que enfrentamos, até porque isto já está suficientemente claro. Importa, sim, encontrarmos soluções coletivas, rápidas e verdadeiras. Essa crise é séria demais para que seja administrada apenas por uns poucos países. Seus governos e bancos centrais continuam com a responsabilidade maior na condução do processo, mas como todos os países sofrem as consequências da crise, todos têm o direito de participar das soluções. Não é por falta de recursos financeiros que os líderes dos países desenvolvidos ainda não encontraram uma solução para a crise. É, permitam-me dizer, por falta de recursos políticos e algumas vezes, por clareza de ideias. Uma parte do mundo não encontrou ainda o equilíbrio entre ajustes fiscais apropriados e estímulos fiscais corretos e precisos para a demanda e o crescimento. Ficam presos na armadilha que não separa interesses partidários daqueles interesses legítimos da sociedade. O desafio colocado pela crise é substituir teorias defasadas, de um mundo velho, por novas formulações para um mundo novo.

Enquanto muitos governos se encolhem, a face mais amarga da crise - a do desemprego - se amplia. Já temos 205 milhões de desempregados no mundo. 44 milhões na Europa. 14 milhões nos Estados Unidos. É vital combater essa praga e impedir que se alastre para outras regiões do planeta. Nós, mulheres, sabemos, mais que ninguém, que o desemprego não é apenas uma estatística. Golpeia as famílias, nossos filhos e nossos maridos. Tira a esperança e deixa a violência e a dor. Senhor presidente, é significativo que seja a presidenta de um país emergente, um país que vive praticamente um ambiente de pleno emprego, que venha falar, aqui, hoje, com cores tão vívidas, dessa tragédia que assola, em especial, os países mais desenvolvidos. Como outros países emergentes, o Brasil tem sido, até agora, menos afetado pela crise mundial. Mas sabemos que nossa capacidade de resistência não é ilimitada. Queremos - e podemos - ajudar, enquanto há tempo, os países onde a crise já é aguda. Um novo tipo de cooperação, entre países emergentes e países desenvolvidos, é a oportunidade histórica para redefinir, de forma solidária e responsável, os compromissos que regem as relações internacionais. O mundo se defronta com uma crise que é ao mesmo tempo econômica, de governança e de coordenação política.

Não haverá a retomada da confiança e do crescimento enquanto não se intensificarem os esforços de coordenação entre os países integrantes da ONU e as demais instituições multilaterais, como o G-20, o Fundo Monetário, o Banco Mundial e outros organismos. A ONU e essas organizações precisam emitir, com a máxima urgência, sinais claros de coesão política e de coordenação macroeconômica. As políticas fiscais e monetárias, por exemplo, devem ser objeto de avaliação mútua, de forma a impedir efeitos indesejáveis sobre os outros países, evitando reações defensivas que, por sua vez, levam a um círculo vicioso. Já a solução do problema da dívida deve ser combinada com o crescimento econômico. Há sinais evidentes de que várias economias avançadas se encontram no limiar da recessão, o que dificultará, sobremaneira, a resolução dos problemas fiscais. Está claro que a prioridade da economia mundial, neste momento, deve ser solucionar o problema dos países em crise de dívida soberana e reverter o presente quadro recessivo. Os países mais desenvolvidos precisam praticar políticas coordenadas de estímulo às economias extremamente debilitadas pela crise. Os países emergentes podem ajudar.

Países altamente superavitários devem estimular seus mercados internos e, quando for o caso, flexibilizar suas políticas cambiais, de maneira a cooperar para o reequilíbrio da demanda global. Urge aprofundar a regulamentação do sistema financeiro e controlar essa fonte inesgotável de instabilidade. É preciso impor controles à guerra cambial, com a adoção de regimes de câmbio flutuante. Trata-se, senhoras e senhores, de impedir a manipulação do câmbio tanto por políticas monetárias excessivamente expansionistas como pelo artifício do câmbio fixo. A reforma das instituições financeiras multilaterais deve, sem sombra de dúvida, prosseguir, aumentando a participação dos países emergentes, principais responsáveis pelo crescimento da economia mundial. O protecionismo e todas as formas de manipulação comercial devem ser combatidos, pois conferem maior competitividade de maneira espúria e fraudulenta.

Senhor presidente, o Brasil está fazendo a sua parte. Com sacrifício, mas com discernimento, mantemos os gastos do governo sob rigoroso controle, a ponto de gerar vultoso superávit nas contas públicas, sem que isso comprometa o êxito das políticas sociais, nem nosso ritmo de investimento e de crescimento. Estamos tomando precauções adicionais para reforçar nossa capacidade de resistência à crise, fortalecendo nosso mercado interno com políticas de distribuição de renda e inovação tecnológica. Há pelo menos três anos, senhor presidente, o Brasil repete, nesta tribuna, que é preciso combater as causas, e não só as consequências da instabilidade global. Temos insistido na interrelação entre desenvolvimento, paz e segurança; e que as políticas de desenvolvimento sejam, cada vez mais, associadas às estratégias do Conselho de Segurança na busca por uma paz sustentável. É assim que agimos em nosso compromisso com o Haiti e com a Guiné-Bissau. Na liderança da Minustah, temos promovido, desde 2004, no Haiti, projetos humanitários, que integram segurança e desenvolvimento. Com profundo respeito à soberania haitiana, o Brasil tem o orgulho de cooperar para a consolidação da democracia naquele país. Estamos aptos a prestar também uma contribuição solidária, aos países irmãos do mundo em desenvolvimento, em matéria de segurança alimentar, tecnologia agrícola, geração de energia limpa e renovável e no combate à pobreza e à fome.

Senhor presidente, desde o final de 2010, assistimos a uma sucessão de manifestações populares que se convencionou denominar "primavera árabe". O Brasil é pátria de adoção de muitos imigrantes daquela parte do mundo. Os brasileiros se solidarizam com a busca de um ideal que não pertence a nenhuma cultura, porque é universal: a liberdade. É preciso que as nações aqui reunidas encontrem uma forma legítima e eficaz de ajudar as sociedades que clamam por reforma, sem retirar de seus cidadãos a condução do processo. Repudiamos com veemência as repressões brutais que vitimam populações civis. Estamos convencidos de que, para a comunidade internacional, o recurso à força deve ser sempre a última alternativa. A busca da paz e da segurança no mundo não pode limitar-se a intervenções em situações extremas. Apoiamos o secretário-geral no seu esforço de engajar as Nações Unidas na prevenção de conflitos, por meio do exercício incansável da democracia e da promoção do desenvolvimento. O mundo sofre, hoje, as dolorosas consequências de intervenções que agravaram os conflitos, possibilitando a infiltração do terrorismo onde ele não existia, inaugurando novos ciclos de violência, multiplicando os números de vítimas civis. Muito se fala sobre a responsabilidade de proteger; pouco se fala sobre a responsabilidade ao proteger. São conceitos que precisamos amadurecer juntos. Para isso, a atuação do Conselho de Segurança é essencial, e ela será tão mais acertada quanto mais legítimas forem suas decisões. E a legitimidade do próprio Conselho depende, cada dia mais, de sua reforma.

Senhor presidente, a cada ano que passa, mais urgente se faz uma solução para a falta de representatividade do Conselho de Segurança, o que corrói sua eficácia. O ex-presidente Joseph Deiss recordou-me um fato impressionante: o debate em torno da reforma do Conselho já entra em seu 18º ano. Não é possível, senhor presidente, protelar mais. O mundo precisa de um Conselho de Segurança que venha a refletir a realidade contemporânea; um Conselho que incorpore novos membros permanentes e não-permanentes, em especial representantes dos países em desenvolvimento. O Brasil está pronto a assumir suas responsabilidades como membro permanente do Conselho. Vivemos em paz com nossos vizinhos há mais de 140 anos. Temos promovido com eles bem-sucedidos processos de integração e de cooperação. Abdicamos, por compromisso constitucional, do uso da energia nuclear para fins que não sejam pacíficos. Tenho orgulho de dizer que o Brasil é um vetor de paz, estabilidade e prosperidade em sua região, e até mesmo fora dela. No Conselho de Direitos Humanos, atuamos inspirados por nossa própria história de superação. Queremos para os outros países o que queremos para nós mesmos. O autoritarismo, a xenofobia, a miséria, a pena capital, a discriminação, todos são algozes dos direitos humanos. Há violações em todos os países, sem exceção. Reconheçamos esta realidade e aceitemos, todos, as críticas. Devemos nos beneficiar delas e criticar, sem meias-palavras, os casos flagrantes de violação, onde quer que ocorram.

Senhor presidente, quero estender ao Sudão do Sul as boas vindas à nossa família de nações. O Brasil está pronto a cooperar com o mais jovem membro das Nações Unidas e contribuir para seu desenvolvimento soberano. Mas lamento ainda não poder saudar, desta tribuna, o ingresso pleno da Palestina na Organização das Nações Unidas. O Brasil já reconhece o Estado palestino como tal, nas fronteiras de 1967, de forma consistente com as resoluções das Nações Unidas. Assim como a maioria dos países nesta Assembleia, acreditamos que é chegado o momento de termos a Palestina aqui representada a pleno título. O reconhecimento ao direito legítimo do povo palestino à soberania e à autodeterminação amplia as possibilidades de uma paz duradoura no Oriente Médio. Apenas uma Palestina livre e soberana poderá atender aos legítimos anseios de Israel por paz com seus vizinhos, segurança em suas fronteiras e estabilidade política em seu entorno regional. Venho de um país onde descendentes de árabes e judeus são compatriotas e convivem em harmonia - como deve ser.

Senhor presidente, o Brasil defende um acordo global, abrangente e ambicioso para combater a mudança do clima no marco das Nações Unidas. Para tanto, é preciso que os países assumam as responsabilidades que lhes cabem. Apresentamos uma proposta concreta, voluntária e significativa de redução (de emissões), durante a Cúpula de Copenhague, em 2009. Esperamos poder avançar já na reunião de Durban, apoiando os países em desenvolvimento nos seus esforços de redução de emissões e garantindo que os países desenvolvidos cumprirão suas obrigações, com novas metas no Protocolo de Quioto, para além de 2012. Teremos a honra de sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, em junho do ano que vem. Juntamente com o secretário-geral Ban Ki-moon, reitero aqui o convite para que todos os chefes de Estado e de Governo compareçam.

Senhor presidente e minhas companheiras mulheres de todo mundo, o Brasil descobriu que a melhor política de desenvolvimento é o combate à pobreza. E que uma verdadeira política de direitos humanos tem por base a diminuição da desigualdade e da discriminação entre as regiões, entre as pessoas e entre os gêneros. O Brasil avançou política, econômica e socialmente sem comprometer sequer uma das liberdades democráticas. Cumprimos quase todos os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, antes de 2015. Saíram da pobreza e ascenderam para a classe média no meu país quase 40 milhões de brasileiras e de brasileiros. Tenho plena convicção de que cumpriremos nossa meta de, até o final do meu governo, erradicar a pobreza extrema no Brasil. No meu país, a mulher tem sido fundamental na superação das desigualdades sociais. Nossos programas de distribuição de renda têm nas mães a figura central. São elas que cuidam dos recursos que permitem às famílias investir na saúde e na educação de seus filhos. Mas o meu país, como todos os países do mundo, ainda precisa fazer muito mais pela valorização e afirmação da mulher. Ao falar disso, cumprimento o secretário-geral Ban Ki-moon pela prioridade que tem conferido às mulheres em sua gestão à frente das Nações Unidas. Saúdo, em especial, a criação da ONU Mulher e sua diretora-executiva, Michelle Bachelet. Senhor presidente, além do meu querido Brasil, sinto-me, aqui, hoje, representando também todas as mulheres do mundo. As mulheres anônimas, aquelas que passam fome e não podem dar de comer aos seus filhos; aquelas que padecem de doenças e não podem se tratar; aquelas que sofrem violência e são discriminadas no emprego, na sociedade e na vida familiar; aquelas cujo trabalho no lar cria as gerações futuras. Junto minha voz às vozes das mulheres que ousaram lutar, que ousaram participar da vida política e da vida profissional, e conquistaram o espaço de poder que me permite estar aqui. Como mulher que sofreu tortura no cárcere, sei como são importantes os valores da democracia, da justiça, dos direitos humanos e da liberdade. E é com a esperança de que estes valores continuem inspirando o trabalho desta Casa das Nações que tenho a honra de iniciar o Debate Geral da 66ª Assembleia-Geral da ONU. Muito obrigada.