sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Opinião - Pelo Direito de livre Manifestação por Priscilla Otoni.

Margarida, amarga vida!

Por Priscilla Otoni


No dia 17 de agosto de 2011, o Brasil assistiu, pela quarta vez, a Marcha das Margaridas. Esse movimento constitui uma ação estratégica das mulheres do campo e da floresta para a busca de visibilidade, reconhecimento social e político e cidadania plena. Homenageia a trabalhadora rural e líder sindical Margarida Maria Alves, morta a mando de José Buarque de Gusmão Neto, um usineiro de Alagoa Grande, no Estado da Paraíba.

Realizada, dessa vez, em Brasília, centro político do país, a Marcha reuniu em torno de 70 mil trabalhadoras rurais em uma manifestação pacífica, legal, legítima e consolidou importante contribuição para afirmar e maturar a prática democrática brasileira.

O Brasil é uma democracia em evolução, na qual a sociedade, em regra, estática e passiva diante dos inúmeros problemas sociais, políticos, econômicos e ambientais que acometem o país, ainda carrega algumas heranças autoritárias e excludentes, principalmente as originárias do nefasto e ainda obscuro período da ditadura militar. As muitas reações contrárias à manifestação demonstram a permanência dessas heranças, ao evidenciar a existência de setores antidemocráticos e certo grau de imaturidade democrática da população.
Os cidadãos brasilienses, parecem não saber ao certo o significado do exercício da cidadania. Em nome de uma suposta usurpação de direitos negam princípios básicos da democracia aos participantes da Marcha. Alguns não conseguiram chegar ao trabalho e reclamaram para si o direito de ir e vir praticado pelos manifestantes. É verdade que o direito de ir e vir se aplica a todos. Entretanto ele só teria sido transgredido se a lei se aplicasse aos carros e não às pessoas.
É bom lembrar que Brasília é o centro político de um país democrático e, por isso, é natural ser palco de protestos e manifestações dos cidadãos para reivindicarem direitos e manifestarem interesses, em suma, para exercerem a cidadania. A área compreendida entre a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes é eminentemente pública e deve atingir seu objetivo, sendo inadmissível, portanto, a sua transformação em espaços privativos para estacionamentos e exclusivos para o fluxo de veículos.
Motoristas ficaram descontentes com os transtornos causados no trânsito. Para muitas pessoas as manifestantes Margaridas foram as grandes responsáveis pelo caos gerado na cidade. Se esqueceram, no entanto, que a situação caótica do trânsito é diária e pode ser explicada por um fator simples e cristalino: o excesso de carros nas ruas. E a tendência é piorar, já que as condições dos transportes públicos permanecem precárias e a indústria automobilística não abre mão do seu crescimento a taxas expressivas a cada ano. Estima-se, para daqui a quatro anos, um acréscimo de 480 mil veículos na frota da Capital Federal. Isso significará a existência de 1,7 milhão de carros em Brasília no ano da Copa do Mundo. Certamente, ninguém chegará ao trabalho. A situação será insustentável e ninguém estará indignado por não chegar ao seu lugar de destino em dia de jogo da Copa do Mundo. (http://www.jornaldebrasilia.com.br/site/noticia.php?id=359741)
É importante ressaltar que a Constituição Federal assegura como direito fundamental a liberdade de expressão, tão aclamada pela classe dos jornalistas. Todavia, por vezes escutamos alguns, ainda ofuscados pela influência doutrinária do regime militar, disfarçados de defensores dos direitos democráticos, utilizarem-se dos meios de comunicação para destilar sua ira contra legítimos movimentos populares.
O artigo 5 °, inciso XVI da CF estabelece que: “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.
A Marcha das Margaridas foi informada às autoridades brasilienses e os meios de comunicação notificaram o acontecimento com vários dias de antecedência, já com a previsão dos transtornos. Entretanto, muitas pessoas sequer sabiam que a Marcha aconteceria e, na ocasião, se sentiram feridas no seu direito de ir e vir. E a culpa é de quem? Dos manifestantes ou da alienação de alguns cidadãos que desconhecem o valor da cidadania e da democracia e se preocupam apenas com seu próprio bem-estar?
As ativistas fizeram sua parte e estavam amparadas constitucionalmente. Em uma democracia sólida as pessoas têm o direito e a liberdade de defender seus interesses. Aqueles que se incomodaram com o movimento das Margaridas são livres para irem às ruas manifestarem suas inquietações e descontentamentos. A Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes atingem seu objetivo com isso! É intrigante refletir sobre as razões motivadoras da criação de um movimento contra a desordem causada pela Marcha das Margaridas. Vejamos:
Primeira razão: Caos no trânsito e o fechamento das principais vias da cidade.
A grande questão está no papel que as autoridades devem desempenhar, no sentido de agir em prol do interesse público com vistas a amenizar os transtornos e garantir a permanecia da ordem. A responsabilidade de organizar o trânsito em dias de manifestações é das autoridades. Portanto, os transtornos causados foi fruto da ineficácia do Poder Público e da sua completa ausência em fornecer alternativas de transporte para que os cidadãos pudessem cumprir suas obrigações e exercer seu direito de ir e vir com plenitude. A responsabilidade pelo caos em Brasília é das autoridades que permitiram o crescimento desordenado da cidade sem prover a infra-estrutura adequada para que se possa exercer a cidadania sem ferir os direitos de outrem. Se o Poder Público não exerce seu papel com eficácia a culpa não pode ser direcionada para as manifestantes.
Segunda razão: Realizar manifestações em horários nos quais há muito fluxo de carros nas ruas é no mínimo um absurdo.
A realização da manifestação em horários de grande fluxo faz parte da estratégia para o alcance dos objetivos do Movimento. Afinal de contas, se 70 mil Margaridas marchassem pela madrugada rumo ao Congresso Nacional, sem a geração do desconforto à população, não haveria necessidade das autoridades brasilienses se mobilizarem para a organização da marcha e, tampouco, dos meios de comunicação notificarem o acontecimento. O horário é determinante para o nível de repercussão que se pretende atingir. Os transtornos e a relativa desordem causam impacto e, por isso, são imprescindíveis para o atingimento dos resultados. Manifestar significa criar desconforto, em uma sociedade que se torna cega por estar submersa na alucinação do cotidiano. Nesse caso, incomodar os cidadãos brasilienses é lembrá-los das causas que o Brasil e o mundo também deveriam abraçar.
Terceira razão: Quem garante os direitos das Margaridas é o Estado e a população não precisa estar envolvida e não pode ser prejudicada.
O responsável por garantir os NOSSOS direitos é um Estado omisso na sua função de promotor do bem-estar social e a serviço do poder econômico. O único caminho para o Brasil se tornar o país dos cidadãos é pressionar as autoridades e cobrar mudanças. E isso, 70 mil Margaridas fizeram. Essas mulheres vieram protestar contra as desigualdades sociais. Vieram denunciar todas as formas de violência, exploração e dominação. Vieram cobrar das autoridades a construção da igualdade entre gêneros. Vieram manifestar por reformas políticas e econômicas que garantam sustentabilidade, justiça, autonomia, igualdade e liberdade. Mulheres maltratadas pela vida, partiram dos seus lugares de origem rumo à capital federal para reivindicar, não o direito de alguns a condições dignas de vida, mas o direito de TODOS. As causas abraçadas por esse Movimento não são pertencentes a um grupo especifico de mulheres. Todas as questões reivindicadas dizem respeito a um Brasil de desiguais e a um mundo de desiguais. Dizem respeito, também, aos principais e grandes desafios globais: desenvolvimento sustentável e humano, direitos humanos, combate a pobreza, democracia, entre outros. Portanto, para um movimento como esse ser ouvido a população precisa estar envolvida e a relativa “desordem” é necessária para que os objetivos sejam alcançados. São preferíveis os tormentos causados em um dia de manifestações que a paz amedrontadora dos tempos da ditadura. Diante da relevância dos objetivos do Movimento, os transtornos provocados pela marcha foram importantes para a potencialização da sua publicidade, indo ao encontro do interesse público.
Quarta razão: As margaridas estavam no parque da cidade realizando comemorações antecipadas com dinheiro público e, em alguns anos, vão decorar as páginas policiais com uma plantação de dinheiro público desviado.
Esse tipo de argumento demonstra como a discriminação está arraigada no cerne da sociedade. Certamente, em um grupo de 70 mil pessoas há gente de todo tipo e de todas as idades. Não surpreenderia que em um grupo tão representativo houvesse desvios de comportamento. Entretanto, generalizar é julgar as pessoas com preconceito. Além disso, a insatisfação com comemorações antecipadas evidencia o completo desconhecimento da população em relação à luta das Margaridas e às reivindicações já conquistadas e merecedoras de comemoração. A própria formação de um movimento que conseguiu aglutinar 70 mil pessoas em torno de interesses comuns é uma grande conquista. Para aqueles que se posicionam de forma superficial, simplista e tendenciosa seguem abaixo as principais conquistas das Margaridas:

1- Documentação, acesso à terra, apoio às mulheres assentadas e políticas de apoio a produção na agricultura familiar.
2- Criação do Programa Nacional de Documentação da Mulher Trabalhadora Rural – PNDMTR.
3- Fortalecimento do PNDTR com ações educativas e unidades móveis em alguns estados.
4- Titulação Conjunta Obrigatória - Edição da Portaria 981 de 02 de outubro de 2003.
5- Revisão dos critérios de seleção de famílias cadastradas para facilitar o acesso das mulheres a terra.
6- Edição da IN 38 de 13 de março de 2007 - normas para efetivar o direito das trabalhadoras rurais ao Programa Nacional de Reforma Agrária, dentre elas a prioridade às mulheres chefes de família.
7- Capacitação de servidores do INCRA sobre legislação e instrumentos para o acesso das mulheres a terra.
8- Formação do Grupo de Trabalho (GT) sobre Gênero e Crédito e a Criação do Pronaf Mulher.
9- Criação do crédito instalação para mulheres assentadas.
10- Declaração de Aptidão ao Pronaf em nome do casal.
11- Ações de Capacitação sobre Pronaf - Ciranda do Pronaf e Capacitação em Políticas Públicas.
12- Inclusão da abordagem de gênero na Política Nacional de Ater e da ATER para Mulheres.
13- Apoio ao protagonismo das mulheres trabalhadoras nos territórios rurais.
14- Criação do Programa de Apoio a Organização Produtiva das Mulheres.
15- Apoio para a realização de Feiras para comercialização dos produtos dos grupos de mulheres.
http://www.contag.org.br/hotsites/margaridas/interna.php

A Marcha das Margaridas é formada por mulheres feridas pela vida e que lutam, diariamente, contra a fome, a pobreza e a violência sexista. Mulheres conhecedoras de um Brasil que nós, engessados na ilha da fantasia dos doutores de colarinho branco, desconhecemos.

Essas mulheres partiram para a cidade garantida, a Capital Federal democrática, que deve garantir o direito de todos os cidadãos em manifestar seus interesses. Essas mulheres partiram para a cidade proibida, proibida por não dispor de estrutura adequada para comportar grande número de manifestantes e proibida, também, pela imaturidade democrática dos seus cidadãos. Essas mulheres vieram “para a cidade garantida, proibida, arranjar meio de vida, Margarida... essas feridas da vida, Margarida... essas feridas da vida, amarga vida” (Veja [Margarida] – Vital Farias).

“É melhor morrer na luta do que morrer de fome”
(Margarida Maria Alves)

Nenhum comentário:

Postar um comentário