terça-feira, 26 de junho de 2012

Correio Braziliense: Crise no Paraguai.


Lugo: a incapacidade de construir consenso político

Autor(es): Creomar Lima Carvalho de Souza
Correio Braziliense - 26/06/2012
 

Professor de relações internacionais e de pós-graduação de relações internacionais e diplomáticas da América do Sul na Universidade Católica de Brasília
A queda do presidente Fernando Lugo — eleito em 2008 — revela algumas considerações importantes sobre a democracia como termo e processo. Para fins de esclarecimento, democracia como termo é o exercício de poder pelo povo. Por seu lado, democracia como processo trata da possibilidade de exercer o poder de forma equilibrada, respeitando o direito de sobrevivência do outro.
Pode-se afirmar que o presidente Lugo foi eleito em um país marcado por grandes desigualdades sociais, cujo elemento mais forte seria o fato de que 80% das terras agricultáveis estão em posse de menos de 2% da população. Esse quadro social injusto serviu, portanto, de catalisador para a eleição de um ex-religioso com um discurso de transformação da sociedade guarani.
Uma vez empossado, porém, tornou-se clara a incapacidade do ex-presidente de realizar a agenda a que se propôs. Por um lado, pela força da oposição; por outro, pela debilidade do próprio Lugo. O resultado dessa impossibilidade foi o descontentamento de parte considerável de seus seguidores e a perda de apoio parlamentar.
Obviamente, a celeridade do processo — cerca de duas horas — torna a situação um tanto estranha para os observadores externos. Porém, não deixa de ser interessante notar que a transição até o presente momento aconteceu de maneira democrática, ou seja, não houve por parte do legislativo paraguaio nenhuma quebra da regra constitucional. O impeachment revela que a classe política paraguaia conseguiu construir acordo numa questão em termos absolutos: Lugo devia deixar a Presidência da República.
Aos críticos do processo cabe, portanto, refletir até que ponto essa decisão dos congressistas pode ser considerada legítima. Entendendo-se legitimidade como derivada da vontade popular. Nesse caso, pode-se, chegar ao conceito de golpe parlamentar. Aí caberia, portanto, a concepção de mundo de que Lugo seria um herói cercado por forças conservadoras em constante conspiração contra o povo paraguaio.
Faz-se necessário então um retorno às reflexões sobre democracia. Entendida como termo e processo, devemos levar em conta que a permissão de espaço para o contraditório obriga o presidente ou seu equivalente a governar para todos e não apenas para aqueles que lhe apoiaram em sua chegada ao poder. Esse elemento pode ser resumido em uma palavra: consenso.
Existe no caso brasileiro a resistência ao uso do termo consenso. Dá-se de forma equivocada uma interpretação negativa que o aproxima da ideia de conchavo ou qualquer outro conceito que mostre acordo entre a classe política com fins escusos. Porém, consenso aqui é visto como capacidade de dialogar com o diferente buscando solucionar determinada demanda de ordem pública.
Àqueles que não acompanham cotidianamente a situação paraguaia, pode-se afirmar que a incapacidade de Fernando Lugo em construir uma agenda que atendesse a mais de um setor da sociedade paraguaia gerou ao longo do tempo uma série de conflitos de ordem social, com resultantes negativas para o todo. O mais grave desses conflitos foi o que desencadeou o processo de afastamento que terminou com a morte de 17 pessoas.
Os que de alguma forma se indignam com o julgamento político — não jurídico — que afastou Lugo, façam o seguinte exercício de pensamento: e se os EUA tivessem ameaçado expulsar o Brasil da ONU quando o Congresso brasileiro decidiu processar politicamente o ex-presidente Fernando Collor? Certamente a sensação de invasão seria reforçada por velhos complexos de inferioridade que marcam as relações entre Brasil e EUA e logo surgiriam clamores por respeito a nossa decisão soberana.
O Paraguai é um dos países mais pobres da América do Sul e tal informação serve de justificativa para a construção de uma série de preconceitos e generalizações. No Brasil, por exemplo, tudo que mereça ser desvalorizado pode receber a alcunha de paraguaio, como produtos de qualidade duvidosa. Pode-se, portanto, retirar de uma instituição democraticamente constituída o direito de lidar com um problema político? São os senadores e deputados paraguaios "crianças" que precisam da tutela democrática brasileira? Para ambas as perguntas a resposta é não.
Recomenda-se, portanto, àqueles que tomarem decisões acerca do futuro das relações do Brasil com o Paraguai, cautela e uma profunda reflexão da realidade política que cercou a queda de Fernando Lugo.

Um comentário:

  1. Creomar, exímia análise da conjuntura da crise política no Paraguai, parabéns!

    Esse tema cabe um incrível debate por analistas internacionais e cientistas políticos, mas, devido à brevidade do espaço faço um pequeno comentário.
    Como conceitua Norberto Bobbio, em seu Dicionário de Política (meu livro de cabeceira) – “do ponto de vista político, pode distinguir o consenso referente às normas fundamentais que regem o funcionamento do sistema – rules of the game do Consenso, que têm por objeto certos fins ou instrumentos particulares, e em regimes democráticos, a aceitação em larga escala das normas que regulam as relações entre o poder legislativo e executivo” - este conceito de Bobbio caracteriza bem o cenário dos Poderes Legislativo e Executivo do Governo Paraguaio, 39 senadores contra 4, e 70 deputados contra 1 – em favor do impeachment do Presidente Fernando Lugo.
    Este consenso, embora constitucional, com menos de 48 horas destituiu o Presidente Lugo, implantando ideologias dominantes e intolerantes, que segundo analistas, ocasionou em golpe de Estado, sem uma relevante ação popular que possa contrapor tal situação, tendo em vista a fragilidade das instituições democráticas do Paraguai.
    Por outro viés, e ainda em Bobbio “o consenso pode ser considerado como fator de cooperação e como elemento fortalecedor do sistema político”, desta forma os presidentes dos países da América Latina estão apoiando a reversão da destituição do Presidente Fernando Lugo, pois, classifica-se como golpe de estado e um atentado a democracia. Também essa postura do parlamento paraguaio pode desencadear diversas restrições na comunidade internacional, sobretudo, na América Latina, como já vem ocorrendo com o MERCOSUL e a Unasul.
    Seria bacana analisar as questões democráticas deste cenário, mais o espaço requer brevidade.

    Lucicleide Lima
    Graduada em Relações Internacionais, pós-graduada em Políticas Públicas.

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