segunda-feira, 29 de abril de 2013

Valor Econômico - A aposta de Merkel para Salvar o euro.


A aposta de Merkel para salvar o euro 


Valor Econômico - 29/04/2013 

O dilema alemão: a premiê Angela Merkel teme que, se fizer demais, estará dominando a Europa e, se fizer de menos, será criticada por não ajudar o bloco

Angela Merkel ouviu na Cidade do Vaticano o apelo feito pelo papa Francisco, em sua missa inaugural, para que os poderosos cuidem dos mais fracos. Algumas horas mais tarde, em sua limusine rumo ao aeroporto, a primeira-ministra alemã recebeu um telefonema do desesperado presidente de Chipre, Nicos Anastasiades. "Preciso de mais solidariedade", implorou ele, segundo autoridades bem informadas sobre a conversa, ocorrida no dia 19 de março. O Parlamento de seu país estava prestes a rejeitar um acordo de prestação de socorro financeiro pela zona do euro. Sua minúscula nação estava à beira da ruína.

"Não vou negociar com você", respondeu Merkel. "Fale com a troika" - isto é, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Comissão Europeia (CE) e o Banco Central Europeu (BCE).

Foi uma atitude típica de Merkel: tentar minimizar o papel hegemônico exercido pela Alemanha no remodelamento da união monetária europeia. Poucos europeus acreditam nisso.

Por mais cuidadosa que Merkel se mostre, a força da Alemanha na Europa está causando tensões. Muitos gregos e espanhóis culpam a austeridade imposta por Berlim por transformar as crises financeiras de seus países em depressões econômicas.

Na semana passada, o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, advertiu que as políticas de austeridade defendidas pela Alemanha precisam ser abrandadas, por não contarem com o "apoio político e social suficiente" em países duramente atingidos. O Ministério da Fazenda alemão replicou que reduzir o déficit é a única maneira de restabelecer a confiança dos investidores na zona do euro.

Este relato da maneira pela qual Merkel administra a crise da Europa, baseado em entrevistas com 17 autoridades públicas, mostra que o pacote de socorro financeiro a Chipre deriva diretamente de princípios que continuarão a nortear a liderança alemã na Europa. Em setembro Merkel deverá conquistar um terceiro mandato como premiê do país. Isso significa que as suas políticas vão dominar a reação da Europa à crise por vários anos. A sobrevivência do euro depende, em grau considerável, do funcionamento ou não da estratégia adotada por ela.

Seu procedimento é atribuir a países com problemas o encargo de salvar o euro, por meio da redução de seus déficits fiscais, custos trabalhistas e bem-estar social. Trata-se de uma estratégia que faz sucesso na Alemanha na mesma medida em que lança a cizânia nos países europeus mais fracos.

Os críticos advertem que alguns anos a mais desses cortes podem causar estragos duradouros às economias, ao tecido social e à estabilidade dos países fracos. "A depressão que está sendo imposta a esses países poderá durar por um bom tempo", diz Paul De Grauwe, professor da London School of Economics e um dos mais destacados economistas europeus. "A percepção em relação à Alemanha está se deteriorando", diz ele.

Os alemães confiam em Merkel mais do que em qualquer outro político como capaz de salvar o euro e defender o dinheiro do contribuinte alemão. No entanto, se a recessão da zona do euro começar a afetar a Alemanha mais do que afetou até agora, as pressões para que Merkel reconsidere seu enfoque poderão se intensificar. Alguns observadores dizem que Berlim poderá estudar a possibilidade de estimular o crescimento por meio de um programa de investimentos públicos, após as eleições. Mas os analistas, em geral, concordam num ponto: a Europa faria bem em não apostar nisso com muita ansiedade.

Merkel, de 58 anos, uma ex-especialista em física teórica, está convencida de que conduz a Europa rumo à sua salvação. Acabar com o costume dos governos de se endividar e eliminar riscos (como os superdimensionados bancos de Chipre, um dos principais alvos do polêmico pacote de socorro financeiro a Chipre) deverá causar sofrimento, dizem seus assessores. Ela recusou pedido de entrevista.

Mas mesmo políticos do sul da Europa que concordam com a posição de Merkel, de que seus países precisam de reformas, cobram mais empenho da Alemanha na revitalização do crescimento. "Precisamos de uma convergência. Berlim tem de entender mais os argumentos do sul, e o sul tem de entender mais os argumentos de Berlim", afirma o ministro das Finanças da Grécia, Yannis Stournaras.

A compreensão mútua está mais distante do que nunca. Manifestantes cipriotas, chocados com as afirmações de Berlim de que seu setor bancário é "insustentável", retrataram Merkel de uniforme nazista. O pacote de socorro financeiro a Chipre - que impediu o pleno acesso de seus habitantes a suas contas bancárias - foi criticado por boa parte da Europa pelo sofrimento imposto aos cipriotas.

Mas, desde o socorro financeiro à Grécia, em 2010, Merkel tenta evitar que países da zona do euro se tornem compromissos financeiros para a Alemanha, que aderiu ao euro sob a garantia de que a união monetária seria uma associação de países autossuficientes.

A ideia inicial de Merkel não deu certo. Ela queria que os investidores em bônus assumissem parte do prejuízo de futuras operações de resgate financeiro. Seus assessores achavam que isso estimularia os investidores a ser mais cautelosos nos empréstimos que concedem e pressionaria países endividados a pôr ordem na casa. O BCE advertiu que medidas desse tipo poderiam atemorizar os investidores, que deixariam de conceder crédito a governos mais frágeis. Isso se mostrou verdadeiro. No fim de 2011, a evasão de capital ameaçava todo o sul da Europa.

Mas a própria Alemanha, enquanto isso, continuava a ser uma ilha de tranquilidade. Merkel não enfrentou nenhuma pressão interna para mudar de política. Em vez disso, ela e seus assessores se dedicaram a formular uma nova arquitetura para a zona do euro. A premiê esperava se antecipar aos acontecimentos e atacar problemas basilares. "Não podemos deixar os mercados nos conduzirem", disse ela a altos funcionários do governo em meados de 2011.

Merkel e seus auxiliares identificaram três causas basilares. Muitos países-membros do euro tinham perdido a competitividade ao descuidar de reformar seus mercados de trabalho, a regulamentação das empresas e outras áreas; o colapso de 2008 tinha puxado o endividamento de alguns países para o limite do que eles conseguiam financiar; e países como Chipre tinham permitido que seus bancos assumissem riscos em excesso.

No terceiro trimestre de 2011, o principal assessor de Merkel para assuntos europeus, Nikolaus Meyer-Landrut, resumiu o raciocínio num diagrama traçado em uma só folha de papel. O diagrama dividia as políticas econômicas da zona do euro em dois grupos: as formuladas por governos nacionais individuais, como impostos, legislação trabalhista e sistemas de aposentadoria, e as geridas pelos órgãos centrais "supranacionais" da União Europeia, entre os quais comércio exterior e normas antitruste. Os problemas da Europa, sugeria o diagrama, derivavam das áreas de política pública controladas pelos governos nacionais.

Centralizar as políticas nacionais seria pouco realista do ponto de vista político - algo comparável a criar os Estados Unidos da Europa. O diagrama sugeria outro caminho: deixar as políticas públicas com os governos nacionais, mas "coordená-los" por meio de normas e pactos novos, e vinculantes.

O diagnóstico mostrou como o pensamento alemão divergia do ponto de vista internacional predominante sobre a crise da zona do euro, ao colocar toda a culpa nos países devedores.

Muitos observadores não alemães veem uma falha mais coletiva, que demanda uma solução coletiva: uma união econômica mais profunda. Isso englobaria orçamentos compartilhados, pan-europeus, para neutralizar os efeitos de desaquecimentos da economia e respaldar bancos problemáticos, e um certo grau de tomada de empréstimos conjunta, além de um banco central mais arrojado na região.

Em 2012, uma Europa irritada com a rigidez de Merkel impôs um recuo. Com o tropeço dos bancos espanhóis, a Alemanha insistiu que o governo espanhol tinha de tomar nada menos que € 100 bilhões para escorá-los. Os mercados reagiram mal.

Diante disso, em junho de 2012, Espanha, França e Itália pressionaram Merkel a aceitar uma "união bancária" - que usaria a força financeira coletiva da Europa para poupar países mais fracos do ônus de salvar seus bancos. Sob pressão, Merkel concordou que o fundo de socorro financeiro da zona do euro, o Mecanismo de Estabilidade Europeia, poderia "ter a possibilidade de recapitalizar os bancos diretamente" assim que a zona do euro criasse um órgão supervisor bancário conjunto.

Do ponto de vista do restante da Europa, a Alemanha tinha finalmente aceitado que a zona do euro precisava unir forças. Mas os parlamentares alemães protestaram contra a aparente capitulação de Merkel.

A Alemanha se apressou em esvaziar as esperanças de que salvariam bancos de outros países. "O sul pensou que todos os países podiam agora transferir o ônus de gerir todos os seus problemas bancários para o Mecanismo de Estabilidade", disse uma autoridade alemã. "Pura fantasia."

Por volta dessa época, em meados de 2012, a Europa também enfrentou o caos político da Grécia. Muitos membros da coalizão de governo da Alemanha duvidavam que a Grécia seria capaz de permanecer na zona do euro. Autoridades falavam da "teoria da perna infectada" - o membro gangrenado representado pela Grécia que tinha de ser amputado para salvar o organismo constituído pelo euro.

Equívocos passados tinham ensinado Merkel a levar em conta as possíveis reações em cadeia do mercado financeiro. Ela convocou, privadamente, o presidente do Bundesbank (o BC alemão), Jen Weidmann, e o membro alemão do conselho executivo do BCE, Jörg Asmussen, para perguntar-lhes o que aconteceria se a Grécia deixasse a união monetária. Ambos disseram que Chipre provavelmente sairia também. E depois, quis saber Merkel, quantas peças do dominó cairiam?

Weidmann concordou, mas acrescentou que manter a Grécia na zona do euro também seria arriscado caso a Grécia não conseguisse cumprir com seus compromissos de reformas.

Merkel precisava de um parceiro confiável em Atenas. Um premiê da Grécia visivelmente tenso, Antonis Samaras, visitou Berlim em agosto e se esforçou por convencer Merkel de que ele conseguiria melhorar a situação do país. Ele tinha ensaiado seu discurso durante algumas horas no hotel. "Posso lhe garantir, trabalharemos dia e noite", disse Samaras. Merkel concluiu que ele merecia seu apoio, desde que realizasse reformas radicais. "Se houver bons avanços, vou pensar na possibilidade de ir a Atenas", disse-lhe ela. Sua viagem à Grécia, algumas semanas depois, foi a demonstração pública de que ela apostava nele.

Mas a situação financeira da Grécia estava severamente deteriorada. O FMI disse que só continuaria a conceder crédito se a Europa perdoasse alguns de seus empréstimos à Grécia. Isso era politicamente tóxico para Merkel.

O ministro das Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, tentou intermediar uma solução. Em negociações secretas realizadas em Paris entre autoridades do FMI e da União Europeia (UE), em 19 de novembro, ele se ofereceu para reduzir ao mínimo os juros sobre os empréstimos gregos. A Europa, disse, poderia perdoar parte da dívida da Grécia depois de 2014, caso o país concluísse as suas reformas.

Merkel repreendeu-o na manhã seguinte. Ele tinha ido longe demais, disse ela. Até aquele momento, podia-se dizer que a Alemanha não tinha perdido dinheiro com pacotes de socorro financeiro, argumentou. "Mas isso significará um prejuízo para os contribuintes alemães. Não posso defender isso", concluiu. A taxa de juros da Grécia poderia ser reduzida, mas não para níveis inferiores aos custos captação pagos pela própria Alemanha, disse ela.

O veto de Merkel fez com que autoridades europeias e do FMI tivessem de voltar às pranchetas. Elas costuraram um plano destinado a estabilizar a dívida da Grécia até 2022, que só passou por causa de vagas notas de rodapé que falam em futuras "novas medidas". A Alemanha nega que isso signifique perdão às dívidas.

O tratamento dado pela premiê à Grécia e a "união bancária" esclareceram as posições alemãs. Países-membros da zona do euro recebedores de pacotes de socorro financeiro precisam quitar a ajuda recebida. E têm de respaldar seus próprios bancos. Mas Chipre não conseguia fazer nada disso.

A Alemanha se recusou a emprestar a Chipre quantia superior à que, segundo o FMI, poderia ser saldada pelo país. E reiterou que investimentos diretos do Mecanismo de Estabilidade em bancos ainda não eram possíveis.

Isso queria dizer que Chipre só conseguiria se manter adimplente se confiscasse os depósitos bancários. Depois que o Parlamento do Chipre rejeitou o primeiro plano da Europa, em 19 de março, o presidente Anastasiades se empenhou em encontrar uma forma de salvar seus bancos. Seu governo estudou a possibilidade de recorrer aos fundos de pensão do país.

Em 22 de março Merkel derrubou essa possibilidade numa reunião com os parlamentares do Bundestag (a câmara dos deputados alemã). O Chipre estava tentando "testar os limites" da Europa e se recusava a ver que seu "modelo de negócios" bancário estava acabado, disse ela, segundo pessoas presentes. Dois dias depois, o Chipre cedeu às exigências da Alemanha e do FMI de encolher radicalmente seus bancos, infligindo perdas drásticas a grandes depositantes.

Merkel não queria ter tamanho domínio sobre a zona do euro. Ela sabia quanta inquietação isso traria tanto na Alemanha quanto na Europa.

"A Alemanha está em posição difícil", disse Merkel ao "The Wall Street Journal" num raro momento de franqueza em 2009, quando a crise da Europa mal começara. "Se fizermos demais, estamos dominando. Se fizermos de menos somos criticados" por não liderar, disse ela. "Sempre vou cuidar para que algum país grande não fique ditando regras."

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