sexta-feira, 29 de abril de 2011

Direto de Buenos Aires por Taís Sandrim Julião

Os eixos da política externa argentina sob o kirchnerismo

Desde 2003, com a ascensão de Néstor Kirchner à presidência, a Argentina tem experimentado um processo de redefinição de seus parâmetros de política externa. Isso se deve, em grande medida, à necessidade de ajustar as diretrizes vigentes na década anterior às necessidades contemporâneas do país, que busca recuperar-se de uma crise econômica e social sem precedentes. Nesse contexto, podemos destacar no discurso kirchnerista dois eixos principais: o conceito de autonomia e a agenda de direitos humanos.
No que tange ao conceito de autonomia, percebe-se que este é entendido como a capacidade de recuperar o poder de decisão argentino tendo em vista variáveis como o adensamento da globalização econômica e a integração regional no Mercosul. Ademais, a autonomia deveria tornar-se um guia nos processos decisórios do Estado, de modo a potencializar as resultantes positivas e minimizar ao máximo os custos inerentes das negociações, seja em âmbito bilateral ou multilateral.
Cabe destacar que essa direção tomada pelo governo de Nestor Kirchner (2003-2007) era corroborada por uma leitura sobre as necessidades domésticas do país, de modo a conceber uma estratégia que priorizasse ações externas voltadas ao atendimento das demandas internas. Dessa forma, o conceito de autonomia estava relacionado a uma leitura contextualizada do interesse nacional argentino. A idéia de estruturar o discurso e a inserção internacional no conceito de autonomia demonstrou-se coerente diante dos desafios da Argentina no início dos 2000. Atualmente, tal conceito tem sido utilizado como norte pelo governo Cristina (2007-2011) como elemento central de uma estratégia de fortalecimento econômico em um cenário de recuperação ainda em progresso.
Em termos práticos, a autonomia resultou em três grandes linhas de ação, presentes nos governos justicialistas dos Kirchner. A primeira diz respeito ao aprofundamento das relações com o Brasil em termos comerciais e políticos, enfatizando o papel estratégico deste país para a Argentina e a receptividade dos mandatos de Lula da Silva à agenda mercosulina. A segunda, por sua vez, refere-se às relações comerciais bilaterais com parceiros tradicionais na América do Sul, entre os quais se destacaram Chile, Bolívia e Venezuela, sendo esse último uma relação que parece se aprofundar em direção a uma agenda política. Por fim, o endosso às instituições internacionais como guias à ação multilateral, sobretudo o direito internacional e a diplomacia, tendo em vista posições históricas defendidas pelo país em assuntos como as Ilhas Malvinas.
No que toca à agenda de direitos humanos, é interessante perceber como o discurso kirchnerista vinculou uma estratégia de construção de legitimidade nacional a uma oportunidade de inserção internacional. Com efeito, é inegável que a trajetória política tanto de Nestor como de Cristina passa pela militância política contra a ditadura militar e, portanto, estão internalizados os discursos críticos sobre o desaparecimento de militantes políticos, tortura e abusos de poder cometidos no período. Com a ascensão ao poder de Nestor e posteriormente de Cristina, a agenda de direitos humanos como um reflexo do processo de reconstrução da dignidade nacional, “ferida” desde os eventos do período militar, foi trazida à tona, de modo a projetar-se tanto nas políticas nacionais quanto na exterior.
A agenda de direitos humanos foi colocada em prática em termos domésticos com a promulgação de diversas leis que visam “fazer justiça”, ainda que tardiamente, aos acontecimentos ocorridos durante o regime militar. Com o kirchnerismo no poder, o país tem julgado nos tribunais nacionais os militares ainda vivos envolvidos em crimes de lesa humanidade durante a ditadura. Ademais, tornou feriado nacional o “Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça” - dia 24 de março, data do Golpe Militar em 1976 que instaurou o regime de exceção no país.
No âmbito externo, tal postura repercutiu na participação ativa em diversos espaços multilaterais globais e regionais voltados à construção de regimes internacionais de direitos humanos. São ilustrativas as participações na Convenção Internacional sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, no sistema interamericano de Proteção e Promoção dos Direitos Humanos; ao Direito à Verdade; na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Incapacidades; e no Protocolo Facultativo da Convenção sobre Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Nesse sentido, a Argentina vem buscando fortalecer-se como uma referência regional em matéria de direitos humanos.
O approach kirchnerista da política externa argentina vem desenhando uma nova imagem para um país cuja história é marcada pelas contradições e descontinuidades. No plano hemisférico, tem obtido resultados políticos satisfatórios na América Latina e, principalmente, com a sul-americana, com destaque para a presidência de Néstor Kirchner na UNASUL, inconclusa devido à sua morte em 2010, porém reconhecida pela atuação ativa em tensões regionais. Por meio do Mercosul, a Argentina busca fortalecer sua presença econômica; nos organismos internacionais, adensa sua participação política na construção de regimes internacionais. Paulatinamente, a Argentina retoma sua identidade internacional como país em desenvolvimento relevante tanto do ponto de vista econômico, quanto político.

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